quinta-feira, outubro 28, 2004

LEI DAS RENDAS (CONT.)



RENDAS JUSTAS (CONT.)
A jurisprudência do Tribunal Constitucional


1. A participação do autor material da lei no “Programa prós e contras”, ao lado do Governo, na defesa política da anunciada reforma, leva-me, tendo por referência as suas desastradas intervenções jurídicas, a historiar muito sumariamente as suas anteriores participações nesta matéria, a fim de que com rigor se possa aferir da sua competência para produzir um texto legislativo conforme à Constituição da República.
2. É sabido que o regime vigente do arrendamento, aprovado pelo Decreto-lei n.º 321 – B/90 (RAU), de 15 de Outubro, no uso da autorização legislativa concedida pela Lei n.º 42/90, de 10 de Agosto, teve também como autor material o mesmo Professor.
3. Pois bem, mal o referido diploma foi publicado logo se detectou, pela análise dos chamados pontos críticos do novo regime, que eram várias as inconstitucionalidades de que o mesmo enfermava – inconstitucionalidades materiais e orgânicas. Esta análise veio, com o decurso do tempo, a ser completamente confirmada pela jurisdição do Tribunal Constitucional. Enumeram-se exemplificativamente as seguintes situações:

· Pelo acórdão nº. 410/97, de 27 de Maio, o Tribunal Constitucional (TC) decretou com força obrigatória geral a norma do art. 1.º do DL n.º278/93, de 10 de Agosto, na parte que revoga o n.º 3 do art. 84.º do RAU, por violação do disposto no art. 168.º, n.º1, al. h), da Constituição da República (CR). Através deste expediente jurídico tinha-se em vista fazer caducar o direito de transmissão do arrendamento pelo facto de o transmissário não haver comunicado ao senhorio, nos termos e prazos legais, a morte do arrendatário ou do cônjuge sobrevivo.
· Pelo acórdão n.º 114/98, de 4 de Fevereiro, o TC declarou inconstitucional com força obrigatória geral a norma do art. 36.º, n.º 1, do RAU, por violação da alínea q) do n.º 1 do art. 168.º da CR. O tribunal considerou que a comissão especial prevista naquele artigo tinha natureza jurisdicional, de tribunal arbitral, pelo que a sua constituição era da competência da Assembleia da República (AR).
· Pelo acórdão n.º 55/99, o TC declarou inconstitucional com força obrigatória geral o art. 69.º, n.º1, al. a) do RAU, por violação do art.168.º, n.º1, al. h) da CR. O RAU, contra o disposto na lei de autorização legislativa, alargou os fundamentos de denúncia do contrato pelo senhorio ao facto de este necessitar do prédio para habitação dos seus descendentes em primeiro grau, tendo obviamente tal desconformidade sido julgada inconstitucional pelo tribunal.
· Pelo acórdão n.º 97/00, de 16 de Fevereiro, o TC declarou inconstitucional com força obrigatória geral o art. 107.º, n.º1, al. b) do RAU, por violação do art. 168.º, n.º1, al. h) da CR. O RAU, na regulação das limitações ao direito de denúncia pelo senhorio, alargou de 20 para 30 anos o período de tempo de permanência do arrendatário no local arrendado, nessa qualidade, como facto impeditivo do exercício daquele direito. O TC considerou que tal alargamento violava o princípio expresso na lei de autorização legislativa segundo o qual as alterações a introduzir ao regime vigente deveriam “preservar as regras socialmente úteis que tutelam a posição do arrendatário”.
· Pelos acórdãos n.ºs 259/98, de 5 de Março e 270/99, de 5 de Maio, foi julgada materialmente inconstitucional, por violação do art. 2.º da CR, a norma do art. 107.º, n.º1, al. b) do RAU, interpretada de modo a abranger os casos em que o prazo já decorrera integralmente no domínio da lei antiga. Como atrás se disse, o RAU, na regulação das limitações ao direito de denúncia do senhorio, alargou de 20 para 30 anos o período de permanência do arrendatário, nessa qualidade, no local arrendado, como facto impeditivo do exercício daquele direito. O TC considerou que, nos casos em que o prazo estabelecido pela lei antiga já tivesse decorrido integralmente, não poderia o contrato ser denunciado, nos termos do art. 69.º do RAU, em virtude de tal interpretação da norma violar o princípio da confiança ínsito no conceito de Estado de Direito. Esta disposição do RAU tem, assim, a especial particularidade de haver sido declarada inconstitucional por duas razões diferentes!
· Pelo acórdão n.º 381/99, de 22 de Junho, o TC declarou materialmente inconstitucional a norma do n.º2 do art. 36.º do Código das Expropriações em conjugação com a norma do art. 72.º, n.º 1 do RAU, por violação do art. 62.º, n.º2, da CR. O TC considerou que a indemnização prevista no RAU (dois meses e meio de renda), para os casos de caducidade do arrendamento por expropriação do direito de arrendamento, não integra, pela sua exiguidade, o conceito de justa indemnização exigido pelo art. 62.º, n.º 2, da CR. Aliás, acrescenta o tribunal, o princípio da justa indemnização é uma concretização do princípio do Estado de Direito.

4. Estes simples exemplos servem para demonstrar que nem a arrogância do Ministro Arnaut, quanto à constitucionalidade da nova “lei”, tem antecedentes em que se possa sustentar, nem o proclamado mérito do seu autor material tem um passado tão recomendável em matéria de respeito pela Constituição que seja susceptível de deixar tranquilos aqueles que recorreram aos seus serviços. Com efeito, as inconstitucionalidades que acima estão enumeradas, decretadas pelo TC, respeitam todas elas a situações em que, umas vezes em flagrante contradição com a lei de autorização, outras em desrespeito directo pelas normas e princípios constitucionais, se pretendeu agravar a posição do arrendatário. Trata-se, todavia, em todos os casos, de erros crassos. De erros que mesmo a mais empedernida cegueira ideológica deveria ter evitado. É claro que, para muitos de nós, nada disto constitui novidade, pois sabemos muito bem que, para certos sectores da Faculdade de Direito de Lisboa, sectores nos quais o autor material da lei se integra, o respeito pela Constituição, como lei fundamental do país, constitui uma aporia. Basta ler os seus manuais e confrontá-los com os textos que os mesmos autores, ou os seus dilectos Mestres, escreveram antes do 25 de Abril, para logo se perceber que, para eles, a Constituição era e é a de 1933! Só que esta questão levanta uma outra: como pode um Estado democrático de direito, mesmo quando transitoriamente governado pela direita mais reaccionária que depois de 74 chegou ao poder, entregar um trabalho desta envergadura e importância política e social a quem já deu sobejas provas de não respeitar plenamente a ordem jurídica portuguesa? Segundo que critérios foi o serviço adjudicado? Houve concurso, houve, ao menos, consulta ao mercado segundo termos de referência apresentados pelo Governo? Ou houve apenas, muito pura e simplesmente, um ajuste directo? E, neste caso, com que fundamento? A competência técnica? A natureza altamente especializada do assunto a tratar? Mas se alguém que, nesta matéria, já deu provas de não estar à altura da incumbência é precisamente o autor material da lei! E é admissível que aqueles que “enchem a boca” com o mercado adjudiquem um serviço desta importância por ajuste directo? Que moralidade! E quanto custou este serviço ao erário público? Quinhentos mil euros como sottovoce se vai dizendo entre assessores e adjuntos próximos do Ministério em questão? Ou custou mais? Não deveria este assunto ser politicamente investigado?

terça-feira, outubro 26, 2004

LEI DAS RENDAS (CONT.)

A LEI DAS RENDAS (CONT.)

O PROGRAMA PRÓS E CONTRAS DA RTP

1. Acabei de assistir ao programa Prós e Contras da RTP, que hoje teve como tema “a nova lei do arrendamento urbano”. Tudo o que neste blog se tem dito sobre esta “lei” foi amplamente confirmado pelo resultado geral do debate. O Ministro, pela primeira vez sujeito a um verdadeiro contraditório e tendo que actuar apenas com o desastrado apoio de Menezes Cordeiro, já que o Prof. Pardal se limitou a saltitar de tema em tema sem nunca se fixar no essencial, foi absolutamente incapaz de sustentar o discurso demagógico com que a central de informação do Governo tem vindo a tentar “vender” a nova “lei”. Aliás, não é de admirar que tal tenha acontecido, porque já no solilóquio que manteve com Judite de Sousa, no mesmo canal televisivo, tinham ficado suficientemente evidenciadas as fragilidades do texto legal relativamente ao discurso que o pretende sustentar, bem como as próprias fragilidades do Ministro, que não assentam apenas no seu desconhecimento da matéria, mas sobretudo na sua incapacidade para convencer o auditório.

2. De facto, o Ministro demonstrou que não domina a realidade social e económica que pretende desregular e que uma argumentação exclusivamente baseada em ideias muito gerais da vulgata neo-liberal, ainda por cima expostas nos simplistas termos em que ele as sintetiza, é absolutamente insuficiente para convencer seja quem for. O discurso dos “velhinhos e dos pobrezinhos” está esgotado. Tanto os mais idosos como os mais desfavorecidos economicamente já perceberam o que a lei diz e não se vão deixar enganar. É que a defesa de uma lei que tenha por real objectivo devolver as casas em bom estado aos senhorios e potenciar a entrada do capital financeiro no mercado imobiliário especulativo dos fogos degradados exige uma perícia e uma arte políticas que o Ministro manifestamente não tem, nem nunca virá a ter. E talvez só hoje o Primeiro-ministro Santana Lopes, se outras ocupações sociais mais relevantes o não impediram de ver o programa, tenha verdadeiramente compreendido o imbróglio em que o meteram. O que não deixa à mesma de ser grave, porque coordenar um Governo não é aparecer rodeado de ministros a anunciar a reforma tal ou tal, mas conhecer em profundidade o seu regime e os seus efeitos, para não ter que bater em retirada às primeiras dificuldades ou, pior ainda, permanecer teimosamente no erro e criar um clima social insustentável. O populismo, Senhor Primeiro-ministro, é aceitar que se diga, como sistematicamente tem dito este seu desajeitado Ministro da Habitação que: “ recebi instruções expressas do Senhor Primeiro-ministro, que me pediu para haver uma preocupação clara com o impacto social que esta lei terá nos idosos…” etc., etc., – a lenga-lenga do costume, que até já é motivo de galhofa na comunicação social, e depois todos virem a compreender, Primeiro-ministro inclusive?, que afinal o regime da “lei” é muito diferente do que foi anunciado. Por isso, insisto no que, por outras palavras, tenho dito: a “lei” não é séria, nem é intelectualmente sustentável, a menos que o Governo se assuma como um promotor sem escrúpulos dos interesses acima identificados.

3. Apraz-me registar as notáveis intervenções que no debate televisivo tiveram a economista moradora na Av. da Igreja (ou do Brasil?), que de forma simples, mas brilhante, expôs com toda a crueza o regime geral a que ficam submetidos os arrendamentos de pretérito, o Dr. Luís Barbosa, que, com a diplomacia possível, disse ao Ministro que nem ele nem os autores materiais da lei sabiam o que andavam a fazer e a senhoria que tem um prédio degradado para recuperar. No plano político e técnico, a Odete Santos esteve insuperável. A Leonor Coutinho deixou perceber qual vai ser a posição do PS: como sempre, do lado do Estado de direito E a propósito: o Bloco não se manifesta publicamente? Ou este seu silêncio já é um prenúncio do que inevitavelmente lhe acontecerá se o PS crescer muito?

4. A lamentável intervenção de Menezes Cordeiro merece um comentário à parte. Se o Ministro esperava deste, ao que parece, autor material da lei, um apoio e uma ajuda para suas conhecidas insuficiências e limitações, deve por esta hora, se lhe restar um mínimo de espírito crítico, estar bem arrependido de o ter levado consigo. Do ponto de vista televisivo, o Professor foi um desastre! Começar por debitar uma bafienta sebenta a propósito do conceito de arrendamento - uma realidade que todos os presentes naquele debate conhecem perfeitamente - e da sua natureza jurídica, com referências pretensamente eruditas aos romanos – que, seja-me permitido dizê-lo, como juristas foram aquilo que Menezes Cordeiro demonstrou nunca poder vir a ser – é meio caminho andado para a catástrofe que as ulteriores intervenções confirmaram. O Prof., ao sujeitar pura e simplesmente o contrato de arrendamento urbano ao tal princípio da autonomia da vontade, que se joga sempre segundo as regras do mais forte, não somente inviabiliza o nascimento do pretendido mercado de arrendamento, por fragilizar excessivamente a posição contratual de uma das partes, como cria uma situação social insustentável para todos os arrendamentos de pretérito. E sendo a República Portuguesa, como efectivamente é, um Estado de direito democrático não é crível que tais normas possam ter acolhimento no seio do nosso ordenamento jurídico, qualquer que seja a esse respeito a vontade do legislador e a dos juristas contratados que o apoiam. Sobre este tema, por agora, fico-me por aqui, não sem antes lembrar ao Prof., a propósito de anteriores andanças suas por estas mesmas matérias, que os homens inteligentes aprendem com os erros dos outros e os normais com os próprios…Lamentável foi igualmente, não apenas do ponto de vista sócio-político, mas também juridicamente, a sua intervenção sobre o arrendamento comercial. Além se ter confrontado, depois da confusa e incorrecta explicação sobre as consequências da “lei” para o dono do restaurante de Alfama, com a resposta que este lhe deu: “Não acredito no que me está a dizer, nem é isso o que a lei diz”, teve ainda de se sujeitar a uma verdadeira lição de direito, dada pela Odete, por não ter sabido distinguir, a propósito do arrendamento comercial, entre a posição de inquilino e a de dono do estabelecimento comercial. Lamentável é igualmente ouvir dizer de um Prof. de direito que um inquilino com contrato de arrendamento há 35 anos pode exigir a indemnização das benfeitorias feitas ao longo dos anos, desde que as prove…

5. Para terminar a intervenção de hoje apenas mais uma nota relativa às obras previstas na nova “lei”. Tem sido argumentação recorrente do Ministro a de que o senhorio só pode aumentar a renda, se fizer obras e de que a lei tem em vista a requalificação urbana, nomeadamente de Lisboa e Porto. A primeira afirmação é falsa, como falsa é a proposição segundo a qual o aumento das rendas está subordinado à apresentação da licença de utilização ou do certificado de habitabilidade. A norma que exige a apresentação destes documentos é supletiva, podendo como tal ser afastada pela vontade das partes. Por aqui logo se vê a importância que o Ministro concede à dita requalificação urbana por esta via. Mas há mais: há um outro aspecto da questão a que ninguém tem aludido e que é o seguinte: o que acontece se o inquilino exigir ao senhorio o certificado de habitabilidade e a Câmara não o passar dentro do prazo previsto na lei geral? Vale o princípio do deferimento tácito?

Lisboa, 26 de Outubro de 2004

segunda-feira, outubro 11, 2004

LEI DAS RENDAS (CONT.)

LEI DAS RENDAS (CONT.I)

A entrevista do Ministro Arnaut à RTP - Comentários


1. Por ter estado ausente do país, só hoje pude ver a entrevista que o Ministro Arnaut concedeu à RTP, num dos últimos dias do mês de Setembro. Depois de ouvido tudo o que o Ministro tinha para dizer a propósito da reforma da legislação do arrendamento urbano, nada tenho a alterar ao que escrevi sobre a dita reforma na minha anterior intervenção, antes, pelo contrário, vejo reforçado o ponto de vista então defendido, de que a reforma assenta numa crença cega nas leis do mercado, segundo a conhecida fórmula da “mão invisível” capaz de a todo o momento restabelecer os equilíbrios perdidos!
2. Não obstante a sua crença cega no mercado, o Ministro evita discutir aprofundadamente as consequências do regime geral previsto na “lei” para os contratos de pretérito, bem como as do novo regime geral do arrendamento. Sente-se muito mais à vontade no discurso sobre as alegadas situações protegidas dos “velhinhos e dos pobrezinhos”, não se esquecendo nunca de recordar que tais medidas estão inseridas na lei por determinação expressa do Senhor Primeiro Ministro! Quando é que o Ministro Arnaut e o Governo de que faz parte percebem que numa sociedade avançada o que se espera do Estado não é que faça caridade, mas que promova condições efectivas para que haja igualdade de oportunidades, desenvolvimento social equilibrado, saber universalizado e partilhado assente numa preparação académica que permita aos portugueses encarar com tranquilidade e confiança os desafios do futuro? Por que ficam o Ministro e Governo tão satisfeitos com as alegadas medidas caritativas?
3. O Ministro deveria descrever com clareza o regime geral aplicável aos contratos de pretérito e afrontar com firmeza as suas consequências. Mas não o faz. Refugia-se em lugares comuns da vulgata neo-liberal e acredita que tudo vai correr bem “graças a Deus”, para usar uma expressão muito do agrado do Senhor Primeiro-ministro. Para que não haja dúvidas a este respeito, mais uma vez se insiste nos traços característicos do referido regime geral, a saber:

a) Entrada a lei em vigor (no primeiro dia útil do segundo mês seguinte ao da sua publicação), o senhorio, por meio de carta registada com aviso de recepção, comunica ao arrendatário a sua intenção de que o arrendamento transite para o novo regime, bem como a renda pretendida para que o arrendamento se mantenha;
b) Esta iniciativa do senhorio (irrenunciável, nos termos da “lei”) deve ser acompanhada da licença de utilização ou do certificado de habitabilidade, emitidos, respectivamente, há menos de vinte ou de oito anos, ou, caso não existam, referir-se expressamente o facto;
c) A licença de utilização ou o certificado de habitabilidade não são exigíveis se “a deterioração do local arrendado resultar de actuação dolosa ou negligente do arrendatário” ou ainda se as partes em contrato de arrendamento acordarem por escrito, independentemente de quaisquer outros requisitos, a sujeição do contrato ao novo regime;
d) Não obstante a não apresentação dos documentos atrás aludidos, o arrendatário deve responder ao senhorio no prazo de 30 dias, indicando a renda que oferece, para que o processo se suspenda até à apresentação de cópia dos documentos acima referidos; caso o não faça, o contrato passa a reger-se pelo novo regime no dia 1 do mês seguinte ao do termo do prazo concedido ao arrendatário para a resposta, com a renda pretendida pelo senhorio e por duração indeterminada;
e) Suspenso o processo em consequência da resposta do arrendatário, será o mesmo reaberto mediante nova comunicação do senhorio acompanhada de cópia de um dos documentos acima indicados (licença de utilização ou certificado de habitabilidade), podendo nesta comunicação o senhorio alterar o montante da renda inicialmente pretendida e o arrendatário, na resposta, o montante da renda inicialmente oferecida;
f) A falta de resposta do arrendatário tem as consequências descritas na segunda parte da alínea d), mas a passagem para o novo regime só terá lugar no dia 1 do mês seguinte ao da recepção pelo arrendatário de nova comunicação do senhorio acompanhada de cópia de um dos documentos em falta;
g) Tendo havido resposta do arrendatário, oferecendo uma renda diferente da pedida pelo senhorio, deverá este, no prazo de 30 dias, comunicar ao arrendatário a aceitação ou a não aceitação da renda oferecida, valendo por aceitação a falta de resposta;
h) Se o senhorio, pelo seu silêncio ou expressamente, aceitar a renda oferecida pelo arrendatário ou este houver aceitado a renda pedida pelo senhorio, ao contrato passa a aplicar-se o novo regime, sendo a renda acordada devida a partir do dia 1 do sétimo mês seguinte ao da data da recepção da comunicação de aceitação;
i) O contrato vigorará pelo período de tempo acordado entre as partes, não podendo contudo este prazo ser inferior a três anos nem superior a trinta, ou, no silêncio das partes ou no caso de o arrendatário ter aceitado a renda proposta na primeira comunicação do senhorio, por tempo indeterminado;
j) Não obstante o prazo estipulado por acordo ou por lei, o contrato poderá ser resolvido nos termos previstos no novo regime (a “lei” dos arrendamentos de pretérito não o diz expressamente, mas é óbvio que esta é pelo menos a intenção do legislador) – regime que tem a particularidade de haver substituído a anterior enumeração casuística e taxativa das causas de resolução por uma amplíssima cláusula geral segundo a qual qualquer das partes pode resolver o contrato com base em “justa causa”, entendendo-se por tal qualquer circunstância que, pela sua gravidade ou consequências, torne inexigível, à outra parte, a manutenção de arrendamento – ou denunciado pelo senhorio desde que tenham decorrido três anos (devendo ainda distinguir-se, para outros efeitos, entre o contrato celebrado por prazo certo e o concluído por tempo indeterminado);
k) Se o senhorio não aceitar a renda proposta pelo arrendatário, pode denunciar o contrato mediante o pagamento de uma indemnização correspondente a três anos do valor médio das propostas formuladas pelo senhorio e pelo arrendatário;
l) A denúncia produz efeitos no prazo de dezoito meses contados a partir da recepção da comunicação do senhorio ou da data em que esta deva ter-se por recebida, altura em que o arrendatário deverá entregar o local arrendado contra o pagamento da indemnização devida.

4. Da descrição do previsto regime legal aplicável aos arrendamentos de pretérito, resulta claro:
· Que a “lei” não estabelece um regime de transição verdadeiro e próprio para os arrendamentos de pretérito, antes se limitando a regular os pressupostos da aplicação a estes contratos do novo regime legal do contrato de arrendamento urbano, bem como as consequências decorrentes da aplicação deste regime; nem, por outro lado, salvaguarda os direitos adquiridos à luz da lei antiga;
· Que toda a regulação do regime geral dos contratos de pretérito, impropriamente denominado regime de transição, assenta em normas instrumentais destinadas a assegurar ao senhorio a passagem o mais rapidamente possível daqueles contratos para o novo regime do arrendamento urbano;
· Que a passagem ao novo regime pode dispensar a exibição da licença de utilização ou do certificado de habitabilidade, desde que haja acordo das partes nesse sentido ou se o arrendatário não responder à primeira comunicação do senhorio na qual ele lhe comunica a intenção de passar o contrato para o novo regime e o aumento de renda pretendido ou, ainda, se a deterioração do local arrendado resultar de actuação dolosa ou negligente do arrendatário;
· Que a “negociação” com vista à fixação de uma nova renda não toma em linha de conta o facto de já existir uma relação contratual entre as partes, uma vez que a não aceitação da proposta do senhorio implica a denúncia do contrato nos termos supra indicados, o que configura uma situação sui generis de contrato de adesão;
· Que a aceitação pelo arrendatário da renda proposta pelo senhorio na primeira comunicação deste e a consequente caracterização do contrato como celebrado por tempo indeterminado não obsta a que o arrendatário não tenha que desocupar o local arrendado por denúncia do contrato, decorridos que sejam três anos desde a entrada em vigor do novo regime contratual;
· Que as indemnizações estabelecidas na “lei” para o caso de o arrendatário não concordar com o aumento de renda pretendido pelo senhorio são tanto mais baixas quanto mais baixa for a contraproposta do arrendatário.


5. Estas simples considerações, além de nos permitirem tomar consciência das meias verdades e mentiras com que a propaganda tem “promovido” esta “lei”, esclarecem-nos também acerca das bases ideológicas em que a mesma assenta. De facto, não está previsto um regime de transição que ao longo de um período de tempo razoável promova a passagem do actual para o novo regime; em segundo lugar, o senhorio não tem que fazer obras para exigir aumento de renda, podendo até ser dispensado de apresentar a licença de utilização ou o certificado de habitabilidade já que as normas que os exigem podem ser afastadas pela vontade das partes (…e vem o Ministro dizer que: “A nossa aposta é a da requalificação urbana”!); em terceiro lugar, não estão criados quaisquer mecanismos destinados a evitar a especulação, sendo até de admitir que a “lei” a promova e apadrinhe tão amplos e incontroláveis são os poderes concedidos ao senhorio; enfim, a lei apoia-se nas típicas e estafadas premissas jurídicas neo-liberais: as “regras do jogo” são imperativamente estabelecidas de acordo com os interesses do mais forte, restando aos mais fracos jogar dentro delas de acordo com o chamado princípio da liberdade contratual, no quadro da qual os arranjos acabam sempre por ser moldados pela parte dominante no contrato…que já tem a seu favor as “regras do jogo”!
6. A propaganda feita com vista à promoção da “lei” tem assentado em duas ou três ideias força: a liberalização do mercado de arrendamento implicará uma baixa generalizada do preço das rendas; a liberalização vai permitir a recuperação dos prédios degradados, assegurando-se assim a requalificação urbana, nomeadamente de Lisboa e do Porto; a liberalização vai fazer regredir o mercado imobiliário de compra e venda incentivar a mobilidade social de modo a adequar a oferta de trabalho às necessidades da procura. Por outras palavras, o Governo entende que é por via da extrema precarização do contrato de arrendamento urbano para habitação que se asseguram os objectivos acima enunciados. O que o Governo não consegue explicar é a razão por que tendo as rendas sido liberalizadas em 1990, embora não de acordo com os cânones da barbárie neo-liberal, esteja o seu preço inflacionado 41% e haja cerca de seiscentos mil prédios devolutos! Um Governo que leve a sério a sua função tem de ter para este fenómeno uma explicação cientificamente aceitável e não apenas baseada na opinião do Ministro. Diz o Ministro que os prédios estão devolutos porque os proprietários não acreditam no contrato de arrendamento. Como a explicação correcta deste fenómeno é em grande medida a chave para uma resposta adequada ao problema do arrendamento, é exigível que o Governo actue, para além das simples opiniões e das considerações valorativas dos seus membros, com base numa resposta cientificamente correcta do fenómeno. Dizer que não se tem confiança no contrato de arrendamento depois da profunda alteração de regime ocorrida em 1990 para os novos arrendamentos é algo que não convence, já que a regulação do chamado RAU é bem semelhante à dos países que à época faziam parte da EU. Desconheço como é a matéria actualmente regulada nos dez países recém-chegados, mas espero bem (ou estarei enganado?) que não tenham sido eles a servir de modelo ao Ministro. Evidentemente, o Ministro refugia-se nas questões processuais e no tempo médio de resposta dos tribunais para a concretização de um despejo. Só que esta resposta não é séria. Então, o problema da morosidade judicial apenas existe relativamente às questões levantadas pelo contrato de arrendamento, nomeadamente as relacionadas como despejo? E as demais? E mesmo que o processo civil em geral, tanto a acção declarativa como a executiva, possa ser reformado sem quebra de garantia dos direitos das partes, será justo e razoável que essa excessiva simplificação que agora se pretende impor comece exactamente por um contrato que tem em vista assegurar a habitação? É com esta atitude de completa cedência aos interesses do proprietário que o Ministro pensa relançar o “mercado” do arrendamento e inverter a tendência para a compra de casa própria?
7. Para além das premissas ideológicas em que assenta, há na reforma, em geral, e no regime que se pretende ver aplicado aos contratos de pretérito, em especial, um tom de desforra e de ajuste de contas que o Ministro não disfarça, quer quando, perguntado sobre os despejos em massa que aplicação da lei iria provocar, responde sobranceira e cinicamente que quem for despejado pode arranjar casa no prédio ao lado, quer principalmente quando se assume como filho e neto de senhorios…
8. Para terminar, por hoje, mais um aviso à navegação: Não esteja o Ministro tão fiado nos méritos do autor material da lei relativamente à conformidade desta com a legislação constitucional, nem na meia dúzia de pareceres jurídicos que encomendou… Quanto ao advogado de Cabeceiras de Basto…bem de Cabeceiras de Basto eu só conheço o outro, o tal que o Ministro não ouvia, mas que o Governo, à cautela, silenciou…
9. Para comentários quer sobre a “lei das rendas”, quer sobre os textos do blog rendasjustas@hotmail.com




Lisboa, 10 de Outubro de 2004

sábado, outubro 02, 2004

LEI DAS RENDAS

LEI DAS RENDAS
Análise do projecto de reforma do arrendamento urbano


No dia 27 de Setembro li pela primeira vez os projectos de textos legislativos aprovados pelo Governo relativos à reforma do arrendamento urbano, graças à publicação que deles fez o Jornal de Negócios. Apesar de se tratar de uma reforma profunda que afecta vida de centenas de milhares de pessoas, provavelmente de milhões, não houve, antes da dita aprovação, qualquer discussão pública da matéria, com a intervenção de todos os interessados, nem está previsto que a mesma se venha a fazer agora, tantos são os indícios que o Governo já deu de que quer ver o novo regime aprovado o mais rapidamente possível.

Esta reforma tão ciosamente escondida de uma parte dos interessados – a parte não representada pelo Governo… – está muito longe de ser, tanto no seu regime jurídico como nas suas consequências sociais e económicas, aquilo que a propaganda governamental vem apregoando aos quatros ventos, com a quase total indiferença quer dos directamente atingidos e das suas entidades representativas, quer dos partidos políticos de oposição representados no Parlamento, provavelmente adormecidos pelo discurso demagógico e populista do Governo que insiste em afirmar que “os velhinhos e os pobrezinhos” não serão afectados. Nada mais falso. Todos, mas mesmo todos, serão dramaticamente atingidos na sua estabilidade social por esta reforma que se entrega cegamente nos braços do mercado e que degrada o conceito de habitação remetendo-o para o rol de uma qualquer mercadoria traficada num supermercado.

Qualquer pessoa que leia despreconceituadamente os projectos de textos legais já aprovados pelo Governo ficará estarrecida com o fanatismo ideológico neo-liberal que impregna toda a reforma. Tanto as situações novas como as antigas são, praticamente sem excepções significativas, tratadas da mesma forma, algumas vezes sem qualquer contemplação nem respeito pelos princípios do Estado de Direito.

Este texto não tem, porém, por objectivo caracterizar ideologicamente o Governo ou sequer discutir o grau de conhecimento com que ele legisla sobre matérias com esta delicadeza social, como sejam, o levantamento da situação existente, o impacto social e económico das medidas tomadas, os efeitos esperados, etc. numa perspectiva que permita ver as pessoas através ou para além da simples frieza dos números. A este respeito o meu cepticismo é total, aliás coincidente com o dos poucos analistas que sobre esta matéria se têm pronunciado, sejam eles da área política ou económica.
Todos sabemos muito bem que o fanático não se preocupa com esses pormenores. Bastam-lhe os “princípios”! Curiosamente há na barbárie neo-liberal uma crença na produção de certos resultados muito semelhante à que noutras épocas históricas, relativamente recentes, existiu noutras doutrinas de cuja execução também se esperava a felicidade universal, fosse qual fosse o sacrifício que as medidas adoptadas para as pôr em prática implicavam para quem tivesse de sofrer os seus efeitos imediatos. O contentamento do Ministro Arnault e da sua Secretária de Estado é tanto que não me admiraria nada que um dia destes, enaltecendo os méritos da reforma, aparecesse um opúsculo denominado “ A vertigem do sucesso”!

Este texto, dizia, tem antes em vista chamar a atenção para certas situações decorrentes da reforma, entre muitas que poderiam ser enumeradas, que me parecem particularmente chocantes e que são bem ilustrativas do seu verdadeiro sentido.

Assim, no breve contributo que por agora me proponho dar, vou acima de tudo referir-me aos arrendamentos de pretérito, ou seja, aos arrendamentos anteriores à entrada em vigor da prevista legislação e regulados pelo chamado Regime do Arrendamento Urbano (abreviadamente, RAU), o qual, como os juristas bem sabem, compreende mais do que um regime. Não que o regime aplicável aos novos arrendamentos (bem vistas as coisas será ele que acabará por aplicar-se a quase todos os velhos arrendamentos…) não seja merecedor das mais veementes críticas pela escandalosa situação de subalternidade em que coloca o inquilino e pela consagração que faz de todo o tipo de interesses imobiliários. Críticas, todavia, que na maior parte dos casos serão de natureza política, já que esta “desregulamentação” que a nova lei consagra, traduzida na ausência de intervenção do Estado num domínio sensível, mais não é do que a “regulamentação” do mercado, sempre traduzida na vontade do mais forte. Por isso, deixo por agora este domínio para me circunscrever aos aspectos mais dramáticos do regime previsto para os arrendamentos de pretérito. (Antes, porém, um aviso à navegação: a propósito dos interesses imobiliários, não se esqueçam os partidos da oposição que a direita espanhola governou durante oito anos fundamentalmente apoiada nos interesses imobiliários…).

Mas vamos então ao mais importante. Na proposta de autorização legislativa, quando se regula o sentido da autorização, diz-se que se estabelecerá um regime de transição para os contratos de pretérito. No entanto, logo a seguir, ao regular-se a extensão, depressa se conclui, pela leitura das medidas reguladoras desse regime de transição, que, de todas as medidas enumeradas – que são muitas…percorrem quase todas as letras do alfabeto –, apenas uma verdadeiramente interessam: os contratos antigos ficam sujeitos ao novo regime por iniciativa do senhorio. O resto são normas instrumentais necessárias à execução deste princípio. Tudo, mas tudo, no regime previsto ficará nas mãos do senhorio, como facilmente se comprovará por uma leitura crítica dos projectos legislativos.

É certo que a “lei” consagra, como condição de entrada no novo regime, a existência de uma licença de utilização concedida há menos de vinte anos ou de um certificado de habitabilidade há menos de oito, o que implicará, em alguns casos, a necessidade de realização de obras. Só que esta exigência, apresentada pela propaganda como destinada a facultar ao inquilino maior comodidade do local arrendado, não o vai beneficiar a ele que, muito provavelmente, algum tempo depois da reocupação, vai ser despejado, mas ao senhorio que poderá, em consequência da valorização do prédio, em princípio com dinheiros públicos, passar a exigir uma renda “compensadora”. Por outro lado, durante a realização das obras o inquilino só terá incómodos e prejuízos sem conta já que enquanto estiver desalojado apenas tem direito a uma compensação correspondente ao montante da renda base condicionada para o local arrendado…com o qual obviamente não encontrará nenhuma habitação disponível! Aliás, esta temática das obras mereceria um desenvolvimento adequado, que agora não poderemos dar-lhe, tendo por isso de ficar para uma nova intervenção. Incidentalmente, dir-se-á apenas que a propaganda tem feito uma ligação entre as obras e a renda, afirmando que só poderá haver aumento da renda se o senhorio realizar obras. Falso, completamente falso. O aumento da renda depende exclusivamente da vontade do senhorio, desde que dotado dos certificados atrás referidos, os quais serão passados, presumo, na maior parte dos casos. Mais: naqueles casos em que o prédio estiver bem conservado exclusivamente por iniciativa e à custa do inquilino, o que acontece em milhares e milhares de situações, nomeadamente entre os arrendatários de classe média, não só o senhorio pode exigir a renda que quiser, como também não está obrigado a indemnizar o inquilino no que quer que seja ou a ter em conta as respectivas benfeitorias na fixação da renda.

Portanto, aquela exigência acerca da qual não me vou, por agora, alongar mais, para não tornar este texto muito extenso, em nada invalida a conclusão acima formulada: tudo na lei está ao serviço do senhorio, sendo por isso muito apropriado o modo como um editorialista de um jornal económico intitulava um artigo dedicado a esta matéria: “Todo o poder aos senhorios!”
E é perante esta situação e seus previsíveis desenvolvimentos que se justifica a formulação das seguintes questões dirigidas à opinião pública em geral, às associações representativas dos interesses dos inquilinos, aos sindicatos, à Assembleia da República, ao Presidente da República, enfim, a todos os que institucionalmente ou não possam ter uma palavra a dizer sobre este assunto:

a) É juridicamente possível à luz da Constituição estabelecer, numa matéria socialmente tão sensível como esta, um regime de transição apenas dependente da vontade do senhorio? É possível que o estado se cale completamente, que não intervenha na regulamentação do regime de transição e deixe apenas falar a voz do senhorio – que nem sequer é a voz do mercado, porque segundo o legislador não há mercado – dominada pelos seus interesses e eventuais e incontroláveis caprichos, ressentimentos e vinganças? É juridicamente possível que numa matéria em que o Estado intervém, nos termos que se conhecem, desde a Primeira Guerra Mundial, embora inicialmente apenas nos concelhos de Lisboa e Porto, estabelecer um regime de transição exclusivamente entregue à iniciativa e vontade do senhorio? Atente-se, a título de exemplo, numa situação bem esclarecedora da violência legislativa deste regime. É ela a seguinte: aplicável o novo regime por iniciativa do senhorio, este propõe ao arrendatário uma nova renda. O arrendatário ou a aceita ou contrapropõe outro montante. No primeiro caso, passa a valer a renda proposta pelo senhorio; no segundo, se o senhorio não aceitar a oferta do inquilino, poderá de imediato denunciar o contrato! É, portanto, falso que haja negociação. O que há é um verdadeiro contrato de adesão. E é ainda mais falsa a ideia que a propaganda tem difundido de que a renda é escalonada no tempo. Mentira! A renda aplica-se de uma só vez, passando a ser devida a partir do dia um do sétimo mês seguinte ao da data da recepção da comunicação da aceitação da proposta;

b) Perante isto, que dizer do princípio da confiança no Estado de Direito? Para que serve? Por outras palavras: é possível sem o estabelecimento de um regime de transição verdadeiro e próprio, um regime com intervenção efectiva dos órgãos do Estado, salvaguardar a validade e eficácia dos princípios associados ao conceito de Estado de Direito? Certamente que o legislador pode revogar leis e pode mesmo em certos termos atribuir-lhe efeitos retroactivos, mas não pode abruptamente modificar um regime que tem quase cem anos (nos aspectos que verdadeiramente interessam) e fazê-lo aplicar a situações contratuais constituídas muitos anos antes da sua entrada em vigor…por simples iniciativa de um dos contraentes!
c) E é legítimo fazer tábua rasa dos direitos adquiridos? O Tribunal constitucional já se pronunciou sobre esta matéria a propósito do regime consagrado no RAU, como, aliás, no mesmo sentido, se haviam já pronunciado os tribunais ordinários; é de esperar, face à arrogância do legislador, que os tribunais venham agora a pronunciar-se do mesmo modo, mas nem por isso a questão acima levantada ficará completamente resolvida, porque o senhorio poderá sempre, nos termos do projectado novo regime, conseguir um fim equivalente ao da denúncia, exigindo do inquilino uma renda manifestamente incomportável, ou seja, através de uma fraude à lei cinicamente permitida, senão mesmo encorajada, pelo legislador; como proteger, nestes casos, o direito adquirido dos que habitam um prédio arrendado há mais de 25 ou 30 anos? Vamos apenas confiar nos tribunais para resolver estas situações? Expô-los ainda mais à crítica demagógica dos que por todos os meios se empenham em descredibilizar as instituições do Estado? Não seria preferível que o legislador tomasse as medidas adequadas, tanto mais que, como se sabe, aos tribunais não lhes compete dizer o que o legislador deve fazer, mas apenas e só o que o legislador não pode fazer?

d) Finalmente, não ofenderá o princípio da igualdade a consagração de regimes diferenciados quer com base em critérios objectivos, porém discricionários, ou mesmo arbitrários, como o da idade, querem com base em critérios pretensamente objectivos, como o do rendimento fiscal declarado pelo arrendatário? Sabendo-se, como se sabe, o que é a evasão fiscal em Portugal, situação, aliás, publicamente reconhecida por governantes e outras altas figuras do Estado, e olhando para as estatísticas recentemente publicadas sobre o rendimento anual bruto declarado por certas profissões liberais, facilmente se ficará com uma ideia das distorções a que este critério levaria; e, ainda sobre o princípio da igualdade, que dizer da grande disparidade que se estabelece em matéria de transição entre os arrendamentos comerciais e os arrendamentos para habitação numa clara ilustração de que o comércio conta muito mais do que as pessoas – será assim? Não contarão as pessoas, pelo menos, o mesmo?

Referi-me, como acima havia dito, apenas a alguns aspectos chocantemente escandalosos do projectado novo regime dos arrendamentos de pretérito, embora haja muitos outros merecedores de idêntica atenção, como, por exemplo, o das inovações processuais tendentes a tornar sumários e expeditos certos procedimentos com claro desrespeito pelos direitos da outra parte e do próprio regime das excepções, acerca do qual existe na opinião pública uma ideia errada dos seus efeitos em virtude da propaganda enganosa que a esse respeito tem sido feita. Na verdade, com excepção dos contratos titulados por inquilinos com idade superior a 65 anos, todos os demais podem ser denunciados pelo senhorio mediante o pagamento de uma indemnização, que, na maior parte dos casos, será irrisória, qualquer que seja a situação económica do arrendatário, o seu tempo de permanência no local arrendado, ou a situação física ou a idade das pessoas que com ele habitam! Todas as situações apontadas conduzem, assim, à conclusão que o objectivo oculto da reforma é o de despejar todos os actuais inquilinos e substitui-los por outros, seguro como está o reformador de que esse é o caminho regenerador que em matéria de habitação conduzirá à felicidade universal!

Perante o que vem de ser exposto é tempo de todos aqueles que acreditam noutros valores que não os das leis cegas do mercado possam contribuir, institucionalmente ou não, com a sua acção para dar corpo à ideia frequentemente repetida de que não queremos nem temos uma ordem constitucional consagradora de uma sociedade exclusivamente regulada pelo mercado!



Lisboa, 30 de Setembro de 2004