LEI DAS RENDAS
LEI DAS RENDAS
Análise do projecto de reforma do arrendamento urbano
No dia 27 de Setembro li pela primeira vez os projectos de textos legislativos aprovados pelo Governo relativos à reforma do arrendamento urbano, graças à publicação que deles fez o Jornal de Negócios. Apesar de se tratar de uma reforma profunda que afecta vida de centenas de milhares de pessoas, provavelmente de milhões, não houve, antes da dita aprovação, qualquer discussão pública da matéria, com a intervenção de todos os interessados, nem está previsto que a mesma se venha a fazer agora, tantos são os indícios que o Governo já deu de que quer ver o novo regime aprovado o mais rapidamente possível.
Esta reforma tão ciosamente escondida de uma parte dos interessados – a parte não representada pelo Governo… – está muito longe de ser, tanto no seu regime jurídico como nas suas consequências sociais e económicas, aquilo que a propaganda governamental vem apregoando aos quatros ventos, com a quase total indiferença quer dos directamente atingidos e das suas entidades representativas, quer dos partidos políticos de oposição representados no Parlamento, provavelmente adormecidos pelo discurso demagógico e populista do Governo que insiste em afirmar que “os velhinhos e os pobrezinhos” não serão afectados. Nada mais falso. Todos, mas mesmo todos, serão dramaticamente atingidos na sua estabilidade social por esta reforma que se entrega cegamente nos braços do mercado e que degrada o conceito de habitação remetendo-o para o rol de uma qualquer mercadoria traficada num supermercado.
Qualquer pessoa que leia despreconceituadamente os projectos de textos legais já aprovados pelo Governo ficará estarrecida com o fanatismo ideológico neo-liberal que impregna toda a reforma. Tanto as situações novas como as antigas são, praticamente sem excepções significativas, tratadas da mesma forma, algumas vezes sem qualquer contemplação nem respeito pelos princípios do Estado de Direito.
Este texto não tem, porém, por objectivo caracterizar ideologicamente o Governo ou sequer discutir o grau de conhecimento com que ele legisla sobre matérias com esta delicadeza social, como sejam, o levantamento da situação existente, o impacto social e económico das medidas tomadas, os efeitos esperados, etc. numa perspectiva que permita ver as pessoas através ou para além da simples frieza dos números. A este respeito o meu cepticismo é total, aliás coincidente com o dos poucos analistas que sobre esta matéria se têm pronunciado, sejam eles da área política ou económica.
Todos sabemos muito bem que o fanático não se preocupa com esses pormenores. Bastam-lhe os “princípios”! Curiosamente há na barbárie neo-liberal uma crença na produção de certos resultados muito semelhante à que noutras épocas históricas, relativamente recentes, existiu noutras doutrinas de cuja execução também se esperava a felicidade universal, fosse qual fosse o sacrifício que as medidas adoptadas para as pôr em prática implicavam para quem tivesse de sofrer os seus efeitos imediatos. O contentamento do Ministro Arnault e da sua Secretária de Estado é tanto que não me admiraria nada que um dia destes, enaltecendo os méritos da reforma, aparecesse um opúsculo denominado “ A vertigem do sucesso”!
Este texto, dizia, tem antes em vista chamar a atenção para certas situações decorrentes da reforma, entre muitas que poderiam ser enumeradas, que me parecem particularmente chocantes e que são bem ilustrativas do seu verdadeiro sentido.
Assim, no breve contributo que por agora me proponho dar, vou acima de tudo referir-me aos arrendamentos de pretérito, ou seja, aos arrendamentos anteriores à entrada em vigor da prevista legislação e regulados pelo chamado Regime do Arrendamento Urbano (abreviadamente, RAU), o qual, como os juristas bem sabem, compreende mais do que um regime. Não que o regime aplicável aos novos arrendamentos (bem vistas as coisas será ele que acabará por aplicar-se a quase todos os velhos arrendamentos…) não seja merecedor das mais veementes críticas pela escandalosa situação de subalternidade em que coloca o inquilino e pela consagração que faz de todo o tipo de interesses imobiliários. Críticas, todavia, que na maior parte dos casos serão de natureza política, já que esta “desregulamentação” que a nova lei consagra, traduzida na ausência de intervenção do Estado num domínio sensível, mais não é do que a “regulamentação” do mercado, sempre traduzida na vontade do mais forte. Por isso, deixo por agora este domínio para me circunscrever aos aspectos mais dramáticos do regime previsto para os arrendamentos de pretérito. (Antes, porém, um aviso à navegação: a propósito dos interesses imobiliários, não se esqueçam os partidos da oposição que a direita espanhola governou durante oito anos fundamentalmente apoiada nos interesses imobiliários…).
Mas vamos então ao mais importante. Na proposta de autorização legislativa, quando se regula o sentido da autorização, diz-se que se estabelecerá um regime de transição para os contratos de pretérito. No entanto, logo a seguir, ao regular-se a extensão, depressa se conclui, pela leitura das medidas reguladoras desse regime de transição, que, de todas as medidas enumeradas – que são muitas…percorrem quase todas as letras do alfabeto –, apenas uma verdadeiramente interessam: os contratos antigos ficam sujeitos ao novo regime por iniciativa do senhorio. O resto são normas instrumentais necessárias à execução deste princípio. Tudo, mas tudo, no regime previsto ficará nas mãos do senhorio, como facilmente se comprovará por uma leitura crítica dos projectos legislativos.
É certo que a “lei” consagra, como condição de entrada no novo regime, a existência de uma licença de utilização concedida há menos de vinte anos ou de um certificado de habitabilidade há menos de oito, o que implicará, em alguns casos, a necessidade de realização de obras. Só que esta exigência, apresentada pela propaganda como destinada a facultar ao inquilino maior comodidade do local arrendado, não o vai beneficiar a ele que, muito provavelmente, algum tempo depois da reocupação, vai ser despejado, mas ao senhorio que poderá, em consequência da valorização do prédio, em princípio com dinheiros públicos, passar a exigir uma renda “compensadora”. Por outro lado, durante a realização das obras o inquilino só terá incómodos e prejuízos sem conta já que enquanto estiver desalojado apenas tem direito a uma compensação correspondente ao montante da renda base condicionada para o local arrendado…com o qual obviamente não encontrará nenhuma habitação disponível! Aliás, esta temática das obras mereceria um desenvolvimento adequado, que agora não poderemos dar-lhe, tendo por isso de ficar para uma nova intervenção. Incidentalmente, dir-se-á apenas que a propaganda tem feito uma ligação entre as obras e a renda, afirmando que só poderá haver aumento da renda se o senhorio realizar obras. Falso, completamente falso. O aumento da renda depende exclusivamente da vontade do senhorio, desde que dotado dos certificados atrás referidos, os quais serão passados, presumo, na maior parte dos casos. Mais: naqueles casos em que o prédio estiver bem conservado exclusivamente por iniciativa e à custa do inquilino, o que acontece em milhares e milhares de situações, nomeadamente entre os arrendatários de classe média, não só o senhorio pode exigir a renda que quiser, como também não está obrigado a indemnizar o inquilino no que quer que seja ou a ter em conta as respectivas benfeitorias na fixação da renda.
Portanto, aquela exigência acerca da qual não me vou, por agora, alongar mais, para não tornar este texto muito extenso, em nada invalida a conclusão acima formulada: tudo na lei está ao serviço do senhorio, sendo por isso muito apropriado o modo como um editorialista de um jornal económico intitulava um artigo dedicado a esta matéria: “Todo o poder aos senhorios!”
E é perante esta situação e seus previsíveis desenvolvimentos que se justifica a formulação das seguintes questões dirigidas à opinião pública em geral, às associações representativas dos interesses dos inquilinos, aos sindicatos, à Assembleia da República, ao Presidente da República, enfim, a todos os que institucionalmente ou não possam ter uma palavra a dizer sobre este assunto:
a) É juridicamente possível à luz da Constituição estabelecer, numa matéria socialmente tão sensível como esta, um regime de transição apenas dependente da vontade do senhorio? É possível que o estado se cale completamente, que não intervenha na regulamentação do regime de transição e deixe apenas falar a voz do senhorio – que nem sequer é a voz do mercado, porque segundo o legislador não há mercado – dominada pelos seus interesses e eventuais e incontroláveis caprichos, ressentimentos e vinganças? É juridicamente possível que numa matéria em que o Estado intervém, nos termos que se conhecem, desde a Primeira Guerra Mundial, embora inicialmente apenas nos concelhos de Lisboa e Porto, estabelecer um regime de transição exclusivamente entregue à iniciativa e vontade do senhorio? Atente-se, a título de exemplo, numa situação bem esclarecedora da violência legislativa deste regime. É ela a seguinte: aplicável o novo regime por iniciativa do senhorio, este propõe ao arrendatário uma nova renda. O arrendatário ou a aceita ou contrapropõe outro montante. No primeiro caso, passa a valer a renda proposta pelo senhorio; no segundo, se o senhorio não aceitar a oferta do inquilino, poderá de imediato denunciar o contrato! É, portanto, falso que haja negociação. O que há é um verdadeiro contrato de adesão. E é ainda mais falsa a ideia que a propaganda tem difundido de que a renda é escalonada no tempo. Mentira! A renda aplica-se de uma só vez, passando a ser devida a partir do dia um do sétimo mês seguinte ao da data da recepção da comunicação da aceitação da proposta;
b) Perante isto, que dizer do princípio da confiança no Estado de Direito? Para que serve? Por outras palavras: é possível sem o estabelecimento de um regime de transição verdadeiro e próprio, um regime com intervenção efectiva dos órgãos do Estado, salvaguardar a validade e eficácia dos princípios associados ao conceito de Estado de Direito? Certamente que o legislador pode revogar leis e pode mesmo em certos termos atribuir-lhe efeitos retroactivos, mas não pode abruptamente modificar um regime que tem quase cem anos (nos aspectos que verdadeiramente interessam) e fazê-lo aplicar a situações contratuais constituídas muitos anos antes da sua entrada em vigor…por simples iniciativa de um dos contraentes!
c) E é legítimo fazer tábua rasa dos direitos adquiridos? O Tribunal constitucional já se pronunciou sobre esta matéria a propósito do regime consagrado no RAU, como, aliás, no mesmo sentido, se haviam já pronunciado os tribunais ordinários; é de esperar, face à arrogância do legislador, que os tribunais venham agora a pronunciar-se do mesmo modo, mas nem por isso a questão acima levantada ficará completamente resolvida, porque o senhorio poderá sempre, nos termos do projectado novo regime, conseguir um fim equivalente ao da denúncia, exigindo do inquilino uma renda manifestamente incomportável, ou seja, através de uma fraude à lei cinicamente permitida, senão mesmo encorajada, pelo legislador; como proteger, nestes casos, o direito adquirido dos que habitam um prédio arrendado há mais de 25 ou 30 anos? Vamos apenas confiar nos tribunais para resolver estas situações? Expô-los ainda mais à crítica demagógica dos que por todos os meios se empenham em descredibilizar as instituições do Estado? Não seria preferível que o legislador tomasse as medidas adequadas, tanto mais que, como se sabe, aos tribunais não lhes compete dizer o que o legislador deve fazer, mas apenas e só o que o legislador não pode fazer?
d) Finalmente, não ofenderá o princípio da igualdade a consagração de regimes diferenciados quer com base em critérios objectivos, porém discricionários, ou mesmo arbitrários, como o da idade, querem com base em critérios pretensamente objectivos, como o do rendimento fiscal declarado pelo arrendatário? Sabendo-se, como se sabe, o que é a evasão fiscal em Portugal, situação, aliás, publicamente reconhecida por governantes e outras altas figuras do Estado, e olhando para as estatísticas recentemente publicadas sobre o rendimento anual bruto declarado por certas profissões liberais, facilmente se ficará com uma ideia das distorções a que este critério levaria; e, ainda sobre o princípio da igualdade, que dizer da grande disparidade que se estabelece em matéria de transição entre os arrendamentos comerciais e os arrendamentos para habitação numa clara ilustração de que o comércio conta muito mais do que as pessoas – será assim? Não contarão as pessoas, pelo menos, o mesmo?
Referi-me, como acima havia dito, apenas a alguns aspectos chocantemente escandalosos do projectado novo regime dos arrendamentos de pretérito, embora haja muitos outros merecedores de idêntica atenção, como, por exemplo, o das inovações processuais tendentes a tornar sumários e expeditos certos procedimentos com claro desrespeito pelos direitos da outra parte e do próprio regime das excepções, acerca do qual existe na opinião pública uma ideia errada dos seus efeitos em virtude da propaganda enganosa que a esse respeito tem sido feita. Na verdade, com excepção dos contratos titulados por inquilinos com idade superior a 65 anos, todos os demais podem ser denunciados pelo senhorio mediante o pagamento de uma indemnização, que, na maior parte dos casos, será irrisória, qualquer que seja a situação económica do arrendatário, o seu tempo de permanência no local arrendado, ou a situação física ou a idade das pessoas que com ele habitam! Todas as situações apontadas conduzem, assim, à conclusão que o objectivo oculto da reforma é o de despejar todos os actuais inquilinos e substitui-los por outros, seguro como está o reformador de que esse é o caminho regenerador que em matéria de habitação conduzirá à felicidade universal!
Perante o que vem de ser exposto é tempo de todos aqueles que acreditam noutros valores que não os das leis cegas do mercado possam contribuir, institucionalmente ou não, com a sua acção para dar corpo à ideia frequentemente repetida de que não queremos nem temos uma ordem constitucional consagradora de uma sociedade exclusivamente regulada pelo mercado!
Lisboa, 30 de Setembro de 2004
No dia 27 de Setembro li pela primeira vez os projectos de textos legislativos aprovados pelo Governo relativos à reforma do arrendamento urbano, graças à publicação que deles fez o Jornal de Negócios. Apesar de se tratar de uma reforma profunda que afecta vida de centenas de milhares de pessoas, provavelmente de milhões, não houve, antes da dita aprovação, qualquer discussão pública da matéria, com a intervenção de todos os interessados, nem está previsto que a mesma se venha a fazer agora, tantos são os indícios que o Governo já deu de que quer ver o novo regime aprovado o mais rapidamente possível.
Esta reforma tão ciosamente escondida de uma parte dos interessados – a parte não representada pelo Governo… – está muito longe de ser, tanto no seu regime jurídico como nas suas consequências sociais e económicas, aquilo que a propaganda governamental vem apregoando aos quatros ventos, com a quase total indiferença quer dos directamente atingidos e das suas entidades representativas, quer dos partidos políticos de oposição representados no Parlamento, provavelmente adormecidos pelo discurso demagógico e populista do Governo que insiste em afirmar que “os velhinhos e os pobrezinhos” não serão afectados. Nada mais falso. Todos, mas mesmo todos, serão dramaticamente atingidos na sua estabilidade social por esta reforma que se entrega cegamente nos braços do mercado e que degrada o conceito de habitação remetendo-o para o rol de uma qualquer mercadoria traficada num supermercado.
Qualquer pessoa que leia despreconceituadamente os projectos de textos legais já aprovados pelo Governo ficará estarrecida com o fanatismo ideológico neo-liberal que impregna toda a reforma. Tanto as situações novas como as antigas são, praticamente sem excepções significativas, tratadas da mesma forma, algumas vezes sem qualquer contemplação nem respeito pelos princípios do Estado de Direito.
Este texto não tem, porém, por objectivo caracterizar ideologicamente o Governo ou sequer discutir o grau de conhecimento com que ele legisla sobre matérias com esta delicadeza social, como sejam, o levantamento da situação existente, o impacto social e económico das medidas tomadas, os efeitos esperados, etc. numa perspectiva que permita ver as pessoas através ou para além da simples frieza dos números. A este respeito o meu cepticismo é total, aliás coincidente com o dos poucos analistas que sobre esta matéria se têm pronunciado, sejam eles da área política ou económica.
Todos sabemos muito bem que o fanático não se preocupa com esses pormenores. Bastam-lhe os “princípios”! Curiosamente há na barbárie neo-liberal uma crença na produção de certos resultados muito semelhante à que noutras épocas históricas, relativamente recentes, existiu noutras doutrinas de cuja execução também se esperava a felicidade universal, fosse qual fosse o sacrifício que as medidas adoptadas para as pôr em prática implicavam para quem tivesse de sofrer os seus efeitos imediatos. O contentamento do Ministro Arnault e da sua Secretária de Estado é tanto que não me admiraria nada que um dia destes, enaltecendo os méritos da reforma, aparecesse um opúsculo denominado “ A vertigem do sucesso”!
Este texto, dizia, tem antes em vista chamar a atenção para certas situações decorrentes da reforma, entre muitas que poderiam ser enumeradas, que me parecem particularmente chocantes e que são bem ilustrativas do seu verdadeiro sentido.
Assim, no breve contributo que por agora me proponho dar, vou acima de tudo referir-me aos arrendamentos de pretérito, ou seja, aos arrendamentos anteriores à entrada em vigor da prevista legislação e regulados pelo chamado Regime do Arrendamento Urbano (abreviadamente, RAU), o qual, como os juristas bem sabem, compreende mais do que um regime. Não que o regime aplicável aos novos arrendamentos (bem vistas as coisas será ele que acabará por aplicar-se a quase todos os velhos arrendamentos…) não seja merecedor das mais veementes críticas pela escandalosa situação de subalternidade em que coloca o inquilino e pela consagração que faz de todo o tipo de interesses imobiliários. Críticas, todavia, que na maior parte dos casos serão de natureza política, já que esta “desregulamentação” que a nova lei consagra, traduzida na ausência de intervenção do Estado num domínio sensível, mais não é do que a “regulamentação” do mercado, sempre traduzida na vontade do mais forte. Por isso, deixo por agora este domínio para me circunscrever aos aspectos mais dramáticos do regime previsto para os arrendamentos de pretérito. (Antes, porém, um aviso à navegação: a propósito dos interesses imobiliários, não se esqueçam os partidos da oposição que a direita espanhola governou durante oito anos fundamentalmente apoiada nos interesses imobiliários…).
Mas vamos então ao mais importante. Na proposta de autorização legislativa, quando se regula o sentido da autorização, diz-se que se estabelecerá um regime de transição para os contratos de pretérito. No entanto, logo a seguir, ao regular-se a extensão, depressa se conclui, pela leitura das medidas reguladoras desse regime de transição, que, de todas as medidas enumeradas – que são muitas…percorrem quase todas as letras do alfabeto –, apenas uma verdadeiramente interessam: os contratos antigos ficam sujeitos ao novo regime por iniciativa do senhorio. O resto são normas instrumentais necessárias à execução deste princípio. Tudo, mas tudo, no regime previsto ficará nas mãos do senhorio, como facilmente se comprovará por uma leitura crítica dos projectos legislativos.
É certo que a “lei” consagra, como condição de entrada no novo regime, a existência de uma licença de utilização concedida há menos de vinte anos ou de um certificado de habitabilidade há menos de oito, o que implicará, em alguns casos, a necessidade de realização de obras. Só que esta exigência, apresentada pela propaganda como destinada a facultar ao inquilino maior comodidade do local arrendado, não o vai beneficiar a ele que, muito provavelmente, algum tempo depois da reocupação, vai ser despejado, mas ao senhorio que poderá, em consequência da valorização do prédio, em princípio com dinheiros públicos, passar a exigir uma renda “compensadora”. Por outro lado, durante a realização das obras o inquilino só terá incómodos e prejuízos sem conta já que enquanto estiver desalojado apenas tem direito a uma compensação correspondente ao montante da renda base condicionada para o local arrendado…com o qual obviamente não encontrará nenhuma habitação disponível! Aliás, esta temática das obras mereceria um desenvolvimento adequado, que agora não poderemos dar-lhe, tendo por isso de ficar para uma nova intervenção. Incidentalmente, dir-se-á apenas que a propaganda tem feito uma ligação entre as obras e a renda, afirmando que só poderá haver aumento da renda se o senhorio realizar obras. Falso, completamente falso. O aumento da renda depende exclusivamente da vontade do senhorio, desde que dotado dos certificados atrás referidos, os quais serão passados, presumo, na maior parte dos casos. Mais: naqueles casos em que o prédio estiver bem conservado exclusivamente por iniciativa e à custa do inquilino, o que acontece em milhares e milhares de situações, nomeadamente entre os arrendatários de classe média, não só o senhorio pode exigir a renda que quiser, como também não está obrigado a indemnizar o inquilino no que quer que seja ou a ter em conta as respectivas benfeitorias na fixação da renda.
Portanto, aquela exigência acerca da qual não me vou, por agora, alongar mais, para não tornar este texto muito extenso, em nada invalida a conclusão acima formulada: tudo na lei está ao serviço do senhorio, sendo por isso muito apropriado o modo como um editorialista de um jornal económico intitulava um artigo dedicado a esta matéria: “Todo o poder aos senhorios!”
E é perante esta situação e seus previsíveis desenvolvimentos que se justifica a formulação das seguintes questões dirigidas à opinião pública em geral, às associações representativas dos interesses dos inquilinos, aos sindicatos, à Assembleia da República, ao Presidente da República, enfim, a todos os que institucionalmente ou não possam ter uma palavra a dizer sobre este assunto:
a) É juridicamente possível à luz da Constituição estabelecer, numa matéria socialmente tão sensível como esta, um regime de transição apenas dependente da vontade do senhorio? É possível que o estado se cale completamente, que não intervenha na regulamentação do regime de transição e deixe apenas falar a voz do senhorio – que nem sequer é a voz do mercado, porque segundo o legislador não há mercado – dominada pelos seus interesses e eventuais e incontroláveis caprichos, ressentimentos e vinganças? É juridicamente possível que numa matéria em que o Estado intervém, nos termos que se conhecem, desde a Primeira Guerra Mundial, embora inicialmente apenas nos concelhos de Lisboa e Porto, estabelecer um regime de transição exclusivamente entregue à iniciativa e vontade do senhorio? Atente-se, a título de exemplo, numa situação bem esclarecedora da violência legislativa deste regime. É ela a seguinte: aplicável o novo regime por iniciativa do senhorio, este propõe ao arrendatário uma nova renda. O arrendatário ou a aceita ou contrapropõe outro montante. No primeiro caso, passa a valer a renda proposta pelo senhorio; no segundo, se o senhorio não aceitar a oferta do inquilino, poderá de imediato denunciar o contrato! É, portanto, falso que haja negociação. O que há é um verdadeiro contrato de adesão. E é ainda mais falsa a ideia que a propaganda tem difundido de que a renda é escalonada no tempo. Mentira! A renda aplica-se de uma só vez, passando a ser devida a partir do dia um do sétimo mês seguinte ao da data da recepção da comunicação da aceitação da proposta;
b) Perante isto, que dizer do princípio da confiança no Estado de Direito? Para que serve? Por outras palavras: é possível sem o estabelecimento de um regime de transição verdadeiro e próprio, um regime com intervenção efectiva dos órgãos do Estado, salvaguardar a validade e eficácia dos princípios associados ao conceito de Estado de Direito? Certamente que o legislador pode revogar leis e pode mesmo em certos termos atribuir-lhe efeitos retroactivos, mas não pode abruptamente modificar um regime que tem quase cem anos (nos aspectos que verdadeiramente interessam) e fazê-lo aplicar a situações contratuais constituídas muitos anos antes da sua entrada em vigor…por simples iniciativa de um dos contraentes!
c) E é legítimo fazer tábua rasa dos direitos adquiridos? O Tribunal constitucional já se pronunciou sobre esta matéria a propósito do regime consagrado no RAU, como, aliás, no mesmo sentido, se haviam já pronunciado os tribunais ordinários; é de esperar, face à arrogância do legislador, que os tribunais venham agora a pronunciar-se do mesmo modo, mas nem por isso a questão acima levantada ficará completamente resolvida, porque o senhorio poderá sempre, nos termos do projectado novo regime, conseguir um fim equivalente ao da denúncia, exigindo do inquilino uma renda manifestamente incomportável, ou seja, através de uma fraude à lei cinicamente permitida, senão mesmo encorajada, pelo legislador; como proteger, nestes casos, o direito adquirido dos que habitam um prédio arrendado há mais de 25 ou 30 anos? Vamos apenas confiar nos tribunais para resolver estas situações? Expô-los ainda mais à crítica demagógica dos que por todos os meios se empenham em descredibilizar as instituições do Estado? Não seria preferível que o legislador tomasse as medidas adequadas, tanto mais que, como se sabe, aos tribunais não lhes compete dizer o que o legislador deve fazer, mas apenas e só o que o legislador não pode fazer?
d) Finalmente, não ofenderá o princípio da igualdade a consagração de regimes diferenciados quer com base em critérios objectivos, porém discricionários, ou mesmo arbitrários, como o da idade, querem com base em critérios pretensamente objectivos, como o do rendimento fiscal declarado pelo arrendatário? Sabendo-se, como se sabe, o que é a evasão fiscal em Portugal, situação, aliás, publicamente reconhecida por governantes e outras altas figuras do Estado, e olhando para as estatísticas recentemente publicadas sobre o rendimento anual bruto declarado por certas profissões liberais, facilmente se ficará com uma ideia das distorções a que este critério levaria; e, ainda sobre o princípio da igualdade, que dizer da grande disparidade que se estabelece em matéria de transição entre os arrendamentos comerciais e os arrendamentos para habitação numa clara ilustração de que o comércio conta muito mais do que as pessoas – será assim? Não contarão as pessoas, pelo menos, o mesmo?
Referi-me, como acima havia dito, apenas a alguns aspectos chocantemente escandalosos do projectado novo regime dos arrendamentos de pretérito, embora haja muitos outros merecedores de idêntica atenção, como, por exemplo, o das inovações processuais tendentes a tornar sumários e expeditos certos procedimentos com claro desrespeito pelos direitos da outra parte e do próprio regime das excepções, acerca do qual existe na opinião pública uma ideia errada dos seus efeitos em virtude da propaganda enganosa que a esse respeito tem sido feita. Na verdade, com excepção dos contratos titulados por inquilinos com idade superior a 65 anos, todos os demais podem ser denunciados pelo senhorio mediante o pagamento de uma indemnização, que, na maior parte dos casos, será irrisória, qualquer que seja a situação económica do arrendatário, o seu tempo de permanência no local arrendado, ou a situação física ou a idade das pessoas que com ele habitam! Todas as situações apontadas conduzem, assim, à conclusão que o objectivo oculto da reforma é o de despejar todos os actuais inquilinos e substitui-los por outros, seguro como está o reformador de que esse é o caminho regenerador que em matéria de habitação conduzirá à felicidade universal!
Perante o que vem de ser exposto é tempo de todos aqueles que acreditam noutros valores que não os das leis cegas do mercado possam contribuir, institucionalmente ou não, com a sua acção para dar corpo à ideia frequentemente repetida de que não queremos nem temos uma ordem constitucional consagradora de uma sociedade exclusivamente regulada pelo mercado!
Lisboa, 30 de Setembro de 2004
2 Comments:
Concordo com a maior parte das considerações formuladas a propósito da lei das rendas, embora ache que a problemática dos direitos adquiridos ao abrigo dos contrarttos de pretérito não está suficientemente desenvolvida. Por outro lado, há também que desenvolver um pouco mais os dois regimes especiais que a reforma prevê para os contratos de pretérito. Será que o Parlamento, nomeadamente a oposição, vai tomar em cosideração algumas das preocupasções aqui manifestadas?
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