segunda-feira, outubro 11, 2004

LEI DAS RENDAS (CONT.)

LEI DAS RENDAS (CONT.I)

A entrevista do Ministro Arnaut à RTP - Comentários


1. Por ter estado ausente do país, só hoje pude ver a entrevista que o Ministro Arnaut concedeu à RTP, num dos últimos dias do mês de Setembro. Depois de ouvido tudo o que o Ministro tinha para dizer a propósito da reforma da legislação do arrendamento urbano, nada tenho a alterar ao que escrevi sobre a dita reforma na minha anterior intervenção, antes, pelo contrário, vejo reforçado o ponto de vista então defendido, de que a reforma assenta numa crença cega nas leis do mercado, segundo a conhecida fórmula da “mão invisível” capaz de a todo o momento restabelecer os equilíbrios perdidos!
2. Não obstante a sua crença cega no mercado, o Ministro evita discutir aprofundadamente as consequências do regime geral previsto na “lei” para os contratos de pretérito, bem como as do novo regime geral do arrendamento. Sente-se muito mais à vontade no discurso sobre as alegadas situações protegidas dos “velhinhos e dos pobrezinhos”, não se esquecendo nunca de recordar que tais medidas estão inseridas na lei por determinação expressa do Senhor Primeiro Ministro! Quando é que o Ministro Arnaut e o Governo de que faz parte percebem que numa sociedade avançada o que se espera do Estado não é que faça caridade, mas que promova condições efectivas para que haja igualdade de oportunidades, desenvolvimento social equilibrado, saber universalizado e partilhado assente numa preparação académica que permita aos portugueses encarar com tranquilidade e confiança os desafios do futuro? Por que ficam o Ministro e Governo tão satisfeitos com as alegadas medidas caritativas?
3. O Ministro deveria descrever com clareza o regime geral aplicável aos contratos de pretérito e afrontar com firmeza as suas consequências. Mas não o faz. Refugia-se em lugares comuns da vulgata neo-liberal e acredita que tudo vai correr bem “graças a Deus”, para usar uma expressão muito do agrado do Senhor Primeiro-ministro. Para que não haja dúvidas a este respeito, mais uma vez se insiste nos traços característicos do referido regime geral, a saber:

a) Entrada a lei em vigor (no primeiro dia útil do segundo mês seguinte ao da sua publicação), o senhorio, por meio de carta registada com aviso de recepção, comunica ao arrendatário a sua intenção de que o arrendamento transite para o novo regime, bem como a renda pretendida para que o arrendamento se mantenha;
b) Esta iniciativa do senhorio (irrenunciável, nos termos da “lei”) deve ser acompanhada da licença de utilização ou do certificado de habitabilidade, emitidos, respectivamente, há menos de vinte ou de oito anos, ou, caso não existam, referir-se expressamente o facto;
c) A licença de utilização ou o certificado de habitabilidade não são exigíveis se “a deterioração do local arrendado resultar de actuação dolosa ou negligente do arrendatário” ou ainda se as partes em contrato de arrendamento acordarem por escrito, independentemente de quaisquer outros requisitos, a sujeição do contrato ao novo regime;
d) Não obstante a não apresentação dos documentos atrás aludidos, o arrendatário deve responder ao senhorio no prazo de 30 dias, indicando a renda que oferece, para que o processo se suspenda até à apresentação de cópia dos documentos acima referidos; caso o não faça, o contrato passa a reger-se pelo novo regime no dia 1 do mês seguinte ao do termo do prazo concedido ao arrendatário para a resposta, com a renda pretendida pelo senhorio e por duração indeterminada;
e) Suspenso o processo em consequência da resposta do arrendatário, será o mesmo reaberto mediante nova comunicação do senhorio acompanhada de cópia de um dos documentos acima indicados (licença de utilização ou certificado de habitabilidade), podendo nesta comunicação o senhorio alterar o montante da renda inicialmente pretendida e o arrendatário, na resposta, o montante da renda inicialmente oferecida;
f) A falta de resposta do arrendatário tem as consequências descritas na segunda parte da alínea d), mas a passagem para o novo regime só terá lugar no dia 1 do mês seguinte ao da recepção pelo arrendatário de nova comunicação do senhorio acompanhada de cópia de um dos documentos em falta;
g) Tendo havido resposta do arrendatário, oferecendo uma renda diferente da pedida pelo senhorio, deverá este, no prazo de 30 dias, comunicar ao arrendatário a aceitação ou a não aceitação da renda oferecida, valendo por aceitação a falta de resposta;
h) Se o senhorio, pelo seu silêncio ou expressamente, aceitar a renda oferecida pelo arrendatário ou este houver aceitado a renda pedida pelo senhorio, ao contrato passa a aplicar-se o novo regime, sendo a renda acordada devida a partir do dia 1 do sétimo mês seguinte ao da data da recepção da comunicação de aceitação;
i) O contrato vigorará pelo período de tempo acordado entre as partes, não podendo contudo este prazo ser inferior a três anos nem superior a trinta, ou, no silêncio das partes ou no caso de o arrendatário ter aceitado a renda proposta na primeira comunicação do senhorio, por tempo indeterminado;
j) Não obstante o prazo estipulado por acordo ou por lei, o contrato poderá ser resolvido nos termos previstos no novo regime (a “lei” dos arrendamentos de pretérito não o diz expressamente, mas é óbvio que esta é pelo menos a intenção do legislador) – regime que tem a particularidade de haver substituído a anterior enumeração casuística e taxativa das causas de resolução por uma amplíssima cláusula geral segundo a qual qualquer das partes pode resolver o contrato com base em “justa causa”, entendendo-se por tal qualquer circunstância que, pela sua gravidade ou consequências, torne inexigível, à outra parte, a manutenção de arrendamento – ou denunciado pelo senhorio desde que tenham decorrido três anos (devendo ainda distinguir-se, para outros efeitos, entre o contrato celebrado por prazo certo e o concluído por tempo indeterminado);
k) Se o senhorio não aceitar a renda proposta pelo arrendatário, pode denunciar o contrato mediante o pagamento de uma indemnização correspondente a três anos do valor médio das propostas formuladas pelo senhorio e pelo arrendatário;
l) A denúncia produz efeitos no prazo de dezoito meses contados a partir da recepção da comunicação do senhorio ou da data em que esta deva ter-se por recebida, altura em que o arrendatário deverá entregar o local arrendado contra o pagamento da indemnização devida.

4. Da descrição do previsto regime legal aplicável aos arrendamentos de pretérito, resulta claro:
· Que a “lei” não estabelece um regime de transição verdadeiro e próprio para os arrendamentos de pretérito, antes se limitando a regular os pressupostos da aplicação a estes contratos do novo regime legal do contrato de arrendamento urbano, bem como as consequências decorrentes da aplicação deste regime; nem, por outro lado, salvaguarda os direitos adquiridos à luz da lei antiga;
· Que toda a regulação do regime geral dos contratos de pretérito, impropriamente denominado regime de transição, assenta em normas instrumentais destinadas a assegurar ao senhorio a passagem o mais rapidamente possível daqueles contratos para o novo regime do arrendamento urbano;
· Que a passagem ao novo regime pode dispensar a exibição da licença de utilização ou do certificado de habitabilidade, desde que haja acordo das partes nesse sentido ou se o arrendatário não responder à primeira comunicação do senhorio na qual ele lhe comunica a intenção de passar o contrato para o novo regime e o aumento de renda pretendido ou, ainda, se a deterioração do local arrendado resultar de actuação dolosa ou negligente do arrendatário;
· Que a “negociação” com vista à fixação de uma nova renda não toma em linha de conta o facto de já existir uma relação contratual entre as partes, uma vez que a não aceitação da proposta do senhorio implica a denúncia do contrato nos termos supra indicados, o que configura uma situação sui generis de contrato de adesão;
· Que a aceitação pelo arrendatário da renda proposta pelo senhorio na primeira comunicação deste e a consequente caracterização do contrato como celebrado por tempo indeterminado não obsta a que o arrendatário não tenha que desocupar o local arrendado por denúncia do contrato, decorridos que sejam três anos desde a entrada em vigor do novo regime contratual;
· Que as indemnizações estabelecidas na “lei” para o caso de o arrendatário não concordar com o aumento de renda pretendido pelo senhorio são tanto mais baixas quanto mais baixa for a contraproposta do arrendatário.


5. Estas simples considerações, além de nos permitirem tomar consciência das meias verdades e mentiras com que a propaganda tem “promovido” esta “lei”, esclarecem-nos também acerca das bases ideológicas em que a mesma assenta. De facto, não está previsto um regime de transição que ao longo de um período de tempo razoável promova a passagem do actual para o novo regime; em segundo lugar, o senhorio não tem que fazer obras para exigir aumento de renda, podendo até ser dispensado de apresentar a licença de utilização ou o certificado de habitabilidade já que as normas que os exigem podem ser afastadas pela vontade das partes (…e vem o Ministro dizer que: “A nossa aposta é a da requalificação urbana”!); em terceiro lugar, não estão criados quaisquer mecanismos destinados a evitar a especulação, sendo até de admitir que a “lei” a promova e apadrinhe tão amplos e incontroláveis são os poderes concedidos ao senhorio; enfim, a lei apoia-se nas típicas e estafadas premissas jurídicas neo-liberais: as “regras do jogo” são imperativamente estabelecidas de acordo com os interesses do mais forte, restando aos mais fracos jogar dentro delas de acordo com o chamado princípio da liberdade contratual, no quadro da qual os arranjos acabam sempre por ser moldados pela parte dominante no contrato…que já tem a seu favor as “regras do jogo”!
6. A propaganda feita com vista à promoção da “lei” tem assentado em duas ou três ideias força: a liberalização do mercado de arrendamento implicará uma baixa generalizada do preço das rendas; a liberalização vai permitir a recuperação dos prédios degradados, assegurando-se assim a requalificação urbana, nomeadamente de Lisboa e do Porto; a liberalização vai fazer regredir o mercado imobiliário de compra e venda incentivar a mobilidade social de modo a adequar a oferta de trabalho às necessidades da procura. Por outras palavras, o Governo entende que é por via da extrema precarização do contrato de arrendamento urbano para habitação que se asseguram os objectivos acima enunciados. O que o Governo não consegue explicar é a razão por que tendo as rendas sido liberalizadas em 1990, embora não de acordo com os cânones da barbárie neo-liberal, esteja o seu preço inflacionado 41% e haja cerca de seiscentos mil prédios devolutos! Um Governo que leve a sério a sua função tem de ter para este fenómeno uma explicação cientificamente aceitável e não apenas baseada na opinião do Ministro. Diz o Ministro que os prédios estão devolutos porque os proprietários não acreditam no contrato de arrendamento. Como a explicação correcta deste fenómeno é em grande medida a chave para uma resposta adequada ao problema do arrendamento, é exigível que o Governo actue, para além das simples opiniões e das considerações valorativas dos seus membros, com base numa resposta cientificamente correcta do fenómeno. Dizer que não se tem confiança no contrato de arrendamento depois da profunda alteração de regime ocorrida em 1990 para os novos arrendamentos é algo que não convence, já que a regulação do chamado RAU é bem semelhante à dos países que à época faziam parte da EU. Desconheço como é a matéria actualmente regulada nos dez países recém-chegados, mas espero bem (ou estarei enganado?) que não tenham sido eles a servir de modelo ao Ministro. Evidentemente, o Ministro refugia-se nas questões processuais e no tempo médio de resposta dos tribunais para a concretização de um despejo. Só que esta resposta não é séria. Então, o problema da morosidade judicial apenas existe relativamente às questões levantadas pelo contrato de arrendamento, nomeadamente as relacionadas como despejo? E as demais? E mesmo que o processo civil em geral, tanto a acção declarativa como a executiva, possa ser reformado sem quebra de garantia dos direitos das partes, será justo e razoável que essa excessiva simplificação que agora se pretende impor comece exactamente por um contrato que tem em vista assegurar a habitação? É com esta atitude de completa cedência aos interesses do proprietário que o Ministro pensa relançar o “mercado” do arrendamento e inverter a tendência para a compra de casa própria?
7. Para além das premissas ideológicas em que assenta, há na reforma, em geral, e no regime que se pretende ver aplicado aos contratos de pretérito, em especial, um tom de desforra e de ajuste de contas que o Ministro não disfarça, quer quando, perguntado sobre os despejos em massa que aplicação da lei iria provocar, responde sobranceira e cinicamente que quem for despejado pode arranjar casa no prédio ao lado, quer principalmente quando se assume como filho e neto de senhorios…
8. Para terminar, por hoje, mais um aviso à navegação: Não esteja o Ministro tão fiado nos méritos do autor material da lei relativamente à conformidade desta com a legislação constitucional, nem na meia dúzia de pareceres jurídicos que encomendou… Quanto ao advogado de Cabeceiras de Basto…bem de Cabeceiras de Basto eu só conheço o outro, o tal que o Ministro não ouvia, mas que o Governo, à cautela, silenciou…
9. Para comentários quer sobre a “lei das rendas”, quer sobre os textos do blog rendasjustas@hotmail.com




Lisboa, 10 de Outubro de 2004