sábado, novembro 13, 2004

LEI DAS RENDAS (CONT.)

LEI DAS RENDAS (CONT.)


O MOVIMENTO DOS INQUILINOS



Na passada segunda-feira, 8 de Novembro, o “Público” anunciava, para essa noite, na Escola Preparatória Eugénio dos Santos, uma reunião de inquilinos das “Avenidas Novas”para uma tomada de posição sobre a nova lei do arrendamento urbano. Tratava-se indiscutivelmente de um facto de grande relevo político e social por ser a primeira vez que os interessados directos numa lei completamente feita à sua revelia iam ter oportunidade de expor os seus problemas, deixar extravasar as angústias que os assolam e certamente dar expressão ao sentimento de profunda revolta que os anima.
Do ponto de vista da frequência, a reunião foi um sucesso. Muita mais gente do que a esperada pelos organizadores. As expectativas acalentadas por todos os participantes cedo, porém, começaram a ser relativamente frustradas pela limitação de tempo imposta à reunião – um pouco menos de duas horas. Os organizadores da reunião, uma senhora inquilina que participou no Programa “Prós e Contras”, em “representação” da “classe média” e dois representantes da Associação de Inquilinos de Lisboa (Presidente e outro membro da direcção), tiveram alguma dificuldade em delimitar o objecto da reunião. Depois de alguns circunlóquios, ficou a perceber-se que a reunião se destinava, numa primeira parte, a esclarecer dúvidas (não referidas situações individuais), e, numa segunda, para aprovar uma moção.
A completa falta de experiência de condução de reuniões por parte dos organizadores e o deficientíssimo conhecimento do regime da “reforma”, aliados à manifestação de tiques autoritários por parte da dita senhora inquilina (que presidiu), não permitiram que a reunião tivesse a força mobilizadora que a situação impõe.
Foi grave que não tivesse havido uma exposição inicial capaz de sublinhar de modo muito directo e claro os aspectos mais negativamente relevantes dos diversos regimes previstos para os arrendamentos de pretérito, a saber: a) regime geral para os arrendamentos anteriores e posteriores ao RAU; b) regime em função dos rendimentos (com menos de cinco salários mínimos ou menos de três); c) regime em função da idade (com mais ou menos de cinco salários mínimos). Grave igualmente que não se tivesse sublinhado com idêntica intensidade a problemática das obras. Consequências: a quem sabia explicar não lhe foi concedido tempo para o fazer e a quem fez perguntas não lhe foram dadas respostas, tendo estes últimos sido remetidos para uma reunião da quarta-feira seguinte, que, tanto quanto se sabe, não se realizou.
Em vez de uma exposição eloquente e politicamente mobilizadora, o que nós ouvimos e sentimos foi um discurso muito pouco preparado e um extremo nervosismo por parte da dita senhora inquilina, que presidiu, denotando uma inexplicável impaciência sempre que alguém pedia a palavra. Mais grave ainda terá sido a intervenção do Presidente da Associação de Inquilinos que, entre algumas conformadas críticas, ia sublinhando os “aspectos positivos” da lei e expondo as suas primaríssimas concepções sobre o direito de propriedade. Com opositores deste jaez bem podem o Governo e o lobby imobiliário que o apoia ficar tranquilos. É inacreditável que uma entidade que tem por objecto a defesa dos inquilinos tenha demonstrado uma tão grande ignorância sobre a problemática do arrendamento urbano em Portugal, inclusive sobre questões jurídicas relevantíssimas (sendo para o caso absolutamente indiferente que o Presidente seja sociólogo ou outra coisa qualquer, ele tem de saber do que está a falar) e evidenciado uma total ausência de estratégia quanto à forma de abordar e combater os efeitos da reforma!
De facto, este último aspecto é sem dúvida o mais lamentável e o mais preocupante. O que se pretende com estas reuniões? Mobilizar os inquilinos para acções de protesto? A resposta do Presidente da Associação de Inquilinos é eloquente: “Não contem connosco para acções que desqualifiquem a nossa posição” (!!!). Terão antes por objectivo a aprovação de uma moção destinada a sensibilizar os grupos parlamentares? Parece que sim. Mas que moção? Toda a gente que conhece o regime do arrendamento urbano que o Governo se propõe aprovar sabe que se está perante medidas radicais inspiradas no que a cartilha neo-liberal tem de mais bárbaro. Por mais que sensatamente se tente explicar ao Governo as especificidades de um mercado tão singular como o do arrendamento urbano e por mais que se insista em que não se pode apagar da noite para o dia um passado de muitas décadas, como paciente e diplomaticamente o fez o Dr. Luís Barbosa no programa televisivo “Prós e Contras”, o Governo mantém-se autistamente alheio a todas os argumentos e continua arrogantemente, pela voz do Ministro Arnaut, a afirmar que “Como se verá, o mercado vai se encarregar de resolver sem dramas todas as situações”.
Perante este quadro o que seria de esperar de um movimento de inquilinos? Em primeiro lugar, que o movimento se organizasse de modo a que todos – e não apenas alguns – dos interesses atingidos pela nova lei estivessem representados na comissão; em segundo lugar, que a comissão fosse constituída por pessoas competentes nos vários domínios relevantes da matéria a tratar; em terceiro lugar, que os membros da comissão tivessem um mínimo de experiência de luta e de reivindicação adquirida em movimentos sociais ou outros; em quarto lugar, que os membros da comissão fossem democraticamente legitimados por uma assembleia de inquilinos; por último, que tivessem uma estratégia.
E o que é que nós vemos? Nós estamos em presença de uma autodenominada comissão (compreende-se que alguém tinha de começar e foi positivo que se tivesse começado) que manifesta muita dificuldade em dialogar com os interessados, constituída por pessoas que apenas parecem estar particularmente interessadas na eliminação ou atenuação de certos efeitos da nova lei, com pouca cultura democrática de trabalho colectivo, pouco ou às vezes mesmo nada conhecedora dos assuntos a tratar, sem qualquer competência técnica em certas áreas e desoladoramente despida de qualquer estratégia de actuação. De facto, este movimento não pode ficar nas mãos de pessoas que pretendem resolver o seu problema pessoal, sem espírito de solidariedade, e que, acima de tudo, não foram capazes de evidenciar uma linha de rumo em que se possa confiar.
Vamos a alguns exemplos. Quanto à competência técnica: um dos membros da dita comissão, reformado, com curso superior, depois de ter passado umas boas horas a ler os textos normativos da nova reforma, concluiu num e-mail (que pode ser exibido): ” Não estaremos a ver bruxas onde elas não existem?” Cita depois, em abono desta sua interrogação, uns textos da reforma cujo sentido não compreendeu, para concluir a seguir:”"Consequentemente nada vai mudar? Não temos que nos preocupar ou estou muito enganado"?. Por outro lado, a proposta, apresentada na reunião do passado dia 8, além ser recuadíssima do ponto de vista político, exprime pretensões menos vantajosas que o regime que a reforma consagra para alguns inquilinos. Todavia, o mais grave não está na incompetência técnica da proposta nem na incompetência técnica dos membros da comissão, mas na total ausência de estratégia politica que ela revela, embora os dois aspectos estejam ligados.
Para se perspectivar a acção do movimento tem de se fazer uma avaliação do que poderá vir a ser a actuação do Parlamento face à proposta de lei de autorização legislativa que o Governo lhe apresentou. Dada, por um lado, a escassa mobilização popular que dita reforma suscitou (por várias razões: primeiro, porque atinge pessoas sem tradição de luta, mais inclinadas a lamentar-se e a queixar-se do que rebelar-se contra as injustiças; em segundo lugar, porque a esmagadora maioria das pessoas desconhece os catastróficos efeitos da lei que aí vem; e, por último, porque factos políticos de vária ordem entretanto ocorridos (caso Marcelo, orçamento, eleições americanas, etc.) não permitiram que os partidos da oposição se tivessem empenhado a sério na contestação da “lei”) e dada, por outro, a permanente atitude de intransigência do Governo, não é de esperar que a maioria parlamentar que apoia o Governo modifique algo do que é essencial, por mais sensatas que sejam as propostas da oposição. O Ministro Arnaut tem afirmado: “Estamos disponíveis para receber contribuições desde que não desvirtuem o sentido da reforma”. Não é preciso dizer mais nada para se perceber o que tal afirmação significa. Depois de aprovada a lei de autorização legislativa pelo Parlamento, a capacidade de manobra do Governo será muito limitada ou quase nula, por razões que não posso aqui explicar, mas que a comissão, se fosse minimamente competente, compreenderia. Face a este quadro, a única atitude que se impõe é exigir que o Presidente da República vete a lei. Não se deve solicitar ao Presidente da República uma actuação jurídica, mas uma actuação exclusivamente política! O Presidente terá de ser confrontado com as suas responsabilidades e o movimento dos inquilinos terá de compreender que pior do que a promulgação da lei pelo Presidente da República seria, nesta fase, uma actuação jurídica da sua parte. Vai haver muito tempo para actuar juridicamente, se a lei for aprovada tal como está ou sem alterações substanciais…
No contexto descrito, que é muito provavelmente o que se vai passar, o movimento de inquilinos, nesta fase, apenas deve manifestar o seu profundo repúdio por uma lei que desrespeita gravemente um dos mais importantes direitos fundamentais de natureza social, manifestar a sua recusa para qualquer tipo de solução que apele para o mercado como resposta e exigir um forte intervenção reguladora do Estado para todos os arrendamentos de pretérito.
Se houvesse veto e o Governo o pretendesse aproveitar, como tábua de salvação, para se livrar do imbróglio em que se meteu (enfim, por razões eleitorais, porque o PP, como toda a gente já percebeu, tem estado muito calado, deixando para o fogoso Ministro Arnaut as despesas da conversa…) se veria depois como actuar, tanto junto dos partidos da oposição como dos da maioria.


Lisboa, 13 de Novembro de 2004

1 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Li isto com imenso interesse gostaria de lhe fazer mais umas perguntas sobre o tema vou enviar-lhe um email

19 de novembro de 2004 às 17:43  

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