segunda-feira, novembro 29, 2004

LEI DAS RENDAS (CONT.)

LEI DAS RENDAS (CONT.)
O veto presidencial
Aprovada que está pelo Parlamento a lei de autorização legislativa sobre o regime do arrendamento urbano, praticamente na versão inicial divulgada pelo Governo, importa agora dirigir a luta no sentido da exigência de veto presidencial. De facto, não parece razoável que o Presidente da República transfira para outrem uma responsabilidade que, a vários títulos, é exclusivamente sua. É sua, porque cada vez mais este Governo é visto como um Governo intimamente ligado ao Presidente da República por todo o circunstancialismo que rodeou a designação do actual Primeiro-ministro, é sua ainda porque os factos posteriores à tomada de posse do Governo mais não tem que ilustrado o ponto de vista daqueles que defendiam não ter Santana Lopes condições para governar o país, não apenas por não gozar da confiança de sectores muito relevantes do seu próprio partido, mas principalmente por não possuir a estabilidade emocional nem os conhecimentos exigíveis a um primeiro-ministro. Perante as sucessivas crises vividas desde há quatro meses, quase todas da responsabilidade do Primeiro-ministro, o Presidente da República ou corta o mal pela raiz e repara o erro cometido, convocando eleições gerais, ou mantém o Governo sob a sua estrita vigilância, tratando-o como um simples governo de gestão para a maior parte dos assuntos. Conhecendo-se agora com razoável precisão a leviandade com que vários membros do Governo opinam sobre os mais diversos assuntos, desdizendo amanhã o que disseram hoje, e o modo aparentemente irresponsável como tomam certas decisões, sendo eles os primeiros a não lhes conferir qualquer estabilidade, o Presidente da República terá particulares responsabilidades na promulgação de leis que envolvam profundas alterações ao regime jurídico vigente, como é o caso da chamada reforma do arrendamento urbano. Aliás, é conhecido o clamor que tal reforma provocou nos mais diversos sectores da sociedade portuguesa. Com excepção do lobby imobiliário e dos sequazes do neo-liberalismo selvagem (passe o pleonasmo), todos os demais sectores, embora com intensidade diferente e com diferentes pontos de vista, são unânimes em considerar que a lei é uma barbaridade por não reconhecer a específicas particularidades do sector. Um Governo descredibilizado tanto perante a maior parte da classe política, como junto da inteligentsia nacional, e sem qualquer apoio da opinião pública, não tem condições políticas para promover reformas de fundo. Por isso, o Presidente da República deve vetar a lei e devolvê-la ao Parlamento com a mensagem de que o assunto, pela sua natureza, exige um tratamento mais consensualizado dos representantes da sociedade portuguesa. Não é o Tribunal Constitucional que deve assumir o ónus de “vetar” a lei, por maiores que sejam – e são – as inconstitucionalidades de que enferma. A questão é política e não jurídica. Só quando a questão política estiver solucionada é que o Tribunal Constitucional deverá ser chamado a analisar a conformidade da lei com a Constituição. Haverá, porém, muito tempo para o fazer, nomeadamente por via da fiscalização incidental e concreta.


Lisboa, 29 de Novembro de 2004

segunda-feira, novembro 15, 2004

LEI DAS RENDAS (CONT.)

O Movimento dos inquilinos - Moção
Em virtude de, por razões profissionais, não poder estar presente na reunião desta noite, proponho que nela seja aprovada a seguinte moção:
MOÇÃO

Considerando a iminente aprovação pela Assembleia da República de uma lei do arrendamento urbano que desrespeita gravemente princípios essenciais do Estado de direito democrático;

Considerando que o regime jurídico contido na referida lei representaria uma profunda ruptura na tradição político-jurídica do regime do arrendamento urbano em Portugal, nomeadamente no último século;

Considerando a desprotecção a que, em geral, ficariam votados todos os actuais inquilinos;

Considerando que a lei apela para um liberalismo sem freios como padrão norteador de todo o regime do arrendamento urbano, o qual, em matéria de fixação do montante das rendas, teria inevitavelmente como consequência um aumento imoderado do preço das mesmas;

Considerando que a lei, tanto pelo aumento incontrolado do preço das rendas como pela desprotecção, em geral, da posição do inquilino, doravante tratado como um precaríssimo possuidor em nome alheio, bem como ainda pelo desrespeito ostensivo por todos os direitos adquiridos ao longo de décadas, teria como consequência inevitável uma onda avassaladora de despejos,

Os inquilinos de Lisboa, reunidos em assembleia, em moção destinada a ser apresentada a todos os grupos parlamentares com assento na Assembleia da República, decidem:

1. Manifestar o seu profundo repúdio por uma lei do arrendamento urbano que desrespeita gravemente um dos mais importantes direitos fundamentais de natureza social;
2. Manifestar a sua recusa para aceitar, em matéria de arrendamento urbano, qualquer tipo de solução que apele para o mercado como resposta;
3. Exigir uma forte intervenção do Estado na regulamentação de todos os arrendamentos de pretérito.

Lisboa, 15 de Novembro de 2004


sábado, novembro 13, 2004

LEI DAS RENDAS (CONT.)

LEI DAS RENDAS (CONT.)


O MOVIMENTO DOS INQUILINOS



Na passada segunda-feira, 8 de Novembro, o “Público” anunciava, para essa noite, na Escola Preparatória Eugénio dos Santos, uma reunião de inquilinos das “Avenidas Novas”para uma tomada de posição sobre a nova lei do arrendamento urbano. Tratava-se indiscutivelmente de um facto de grande relevo político e social por ser a primeira vez que os interessados directos numa lei completamente feita à sua revelia iam ter oportunidade de expor os seus problemas, deixar extravasar as angústias que os assolam e certamente dar expressão ao sentimento de profunda revolta que os anima.
Do ponto de vista da frequência, a reunião foi um sucesso. Muita mais gente do que a esperada pelos organizadores. As expectativas acalentadas por todos os participantes cedo, porém, começaram a ser relativamente frustradas pela limitação de tempo imposta à reunião – um pouco menos de duas horas. Os organizadores da reunião, uma senhora inquilina que participou no Programa “Prós e Contras”, em “representação” da “classe média” e dois representantes da Associação de Inquilinos de Lisboa (Presidente e outro membro da direcção), tiveram alguma dificuldade em delimitar o objecto da reunião. Depois de alguns circunlóquios, ficou a perceber-se que a reunião se destinava, numa primeira parte, a esclarecer dúvidas (não referidas situações individuais), e, numa segunda, para aprovar uma moção.
A completa falta de experiência de condução de reuniões por parte dos organizadores e o deficientíssimo conhecimento do regime da “reforma”, aliados à manifestação de tiques autoritários por parte da dita senhora inquilina (que presidiu), não permitiram que a reunião tivesse a força mobilizadora que a situação impõe.
Foi grave que não tivesse havido uma exposição inicial capaz de sublinhar de modo muito directo e claro os aspectos mais negativamente relevantes dos diversos regimes previstos para os arrendamentos de pretérito, a saber: a) regime geral para os arrendamentos anteriores e posteriores ao RAU; b) regime em função dos rendimentos (com menos de cinco salários mínimos ou menos de três); c) regime em função da idade (com mais ou menos de cinco salários mínimos). Grave igualmente que não se tivesse sublinhado com idêntica intensidade a problemática das obras. Consequências: a quem sabia explicar não lhe foi concedido tempo para o fazer e a quem fez perguntas não lhe foram dadas respostas, tendo estes últimos sido remetidos para uma reunião da quarta-feira seguinte, que, tanto quanto se sabe, não se realizou.
Em vez de uma exposição eloquente e politicamente mobilizadora, o que nós ouvimos e sentimos foi um discurso muito pouco preparado e um extremo nervosismo por parte da dita senhora inquilina, que presidiu, denotando uma inexplicável impaciência sempre que alguém pedia a palavra. Mais grave ainda terá sido a intervenção do Presidente da Associação de Inquilinos que, entre algumas conformadas críticas, ia sublinhando os “aspectos positivos” da lei e expondo as suas primaríssimas concepções sobre o direito de propriedade. Com opositores deste jaez bem podem o Governo e o lobby imobiliário que o apoia ficar tranquilos. É inacreditável que uma entidade que tem por objecto a defesa dos inquilinos tenha demonstrado uma tão grande ignorância sobre a problemática do arrendamento urbano em Portugal, inclusive sobre questões jurídicas relevantíssimas (sendo para o caso absolutamente indiferente que o Presidente seja sociólogo ou outra coisa qualquer, ele tem de saber do que está a falar) e evidenciado uma total ausência de estratégia quanto à forma de abordar e combater os efeitos da reforma!
De facto, este último aspecto é sem dúvida o mais lamentável e o mais preocupante. O que se pretende com estas reuniões? Mobilizar os inquilinos para acções de protesto? A resposta do Presidente da Associação de Inquilinos é eloquente: “Não contem connosco para acções que desqualifiquem a nossa posição” (!!!). Terão antes por objectivo a aprovação de uma moção destinada a sensibilizar os grupos parlamentares? Parece que sim. Mas que moção? Toda a gente que conhece o regime do arrendamento urbano que o Governo se propõe aprovar sabe que se está perante medidas radicais inspiradas no que a cartilha neo-liberal tem de mais bárbaro. Por mais que sensatamente se tente explicar ao Governo as especificidades de um mercado tão singular como o do arrendamento urbano e por mais que se insista em que não se pode apagar da noite para o dia um passado de muitas décadas, como paciente e diplomaticamente o fez o Dr. Luís Barbosa no programa televisivo “Prós e Contras”, o Governo mantém-se autistamente alheio a todas os argumentos e continua arrogantemente, pela voz do Ministro Arnaut, a afirmar que “Como se verá, o mercado vai se encarregar de resolver sem dramas todas as situações”.
Perante este quadro o que seria de esperar de um movimento de inquilinos? Em primeiro lugar, que o movimento se organizasse de modo a que todos – e não apenas alguns – dos interesses atingidos pela nova lei estivessem representados na comissão; em segundo lugar, que a comissão fosse constituída por pessoas competentes nos vários domínios relevantes da matéria a tratar; em terceiro lugar, que os membros da comissão tivessem um mínimo de experiência de luta e de reivindicação adquirida em movimentos sociais ou outros; em quarto lugar, que os membros da comissão fossem democraticamente legitimados por uma assembleia de inquilinos; por último, que tivessem uma estratégia.
E o que é que nós vemos? Nós estamos em presença de uma autodenominada comissão (compreende-se que alguém tinha de começar e foi positivo que se tivesse começado) que manifesta muita dificuldade em dialogar com os interessados, constituída por pessoas que apenas parecem estar particularmente interessadas na eliminação ou atenuação de certos efeitos da nova lei, com pouca cultura democrática de trabalho colectivo, pouco ou às vezes mesmo nada conhecedora dos assuntos a tratar, sem qualquer competência técnica em certas áreas e desoladoramente despida de qualquer estratégia de actuação. De facto, este movimento não pode ficar nas mãos de pessoas que pretendem resolver o seu problema pessoal, sem espírito de solidariedade, e que, acima de tudo, não foram capazes de evidenciar uma linha de rumo em que se possa confiar.
Vamos a alguns exemplos. Quanto à competência técnica: um dos membros da dita comissão, reformado, com curso superior, depois de ter passado umas boas horas a ler os textos normativos da nova reforma, concluiu num e-mail (que pode ser exibido): ” Não estaremos a ver bruxas onde elas não existem?” Cita depois, em abono desta sua interrogação, uns textos da reforma cujo sentido não compreendeu, para concluir a seguir:”"Consequentemente nada vai mudar? Não temos que nos preocupar ou estou muito enganado"?. Por outro lado, a proposta, apresentada na reunião do passado dia 8, além ser recuadíssima do ponto de vista político, exprime pretensões menos vantajosas que o regime que a reforma consagra para alguns inquilinos. Todavia, o mais grave não está na incompetência técnica da proposta nem na incompetência técnica dos membros da comissão, mas na total ausência de estratégia politica que ela revela, embora os dois aspectos estejam ligados.
Para se perspectivar a acção do movimento tem de se fazer uma avaliação do que poderá vir a ser a actuação do Parlamento face à proposta de lei de autorização legislativa que o Governo lhe apresentou. Dada, por um lado, a escassa mobilização popular que dita reforma suscitou (por várias razões: primeiro, porque atinge pessoas sem tradição de luta, mais inclinadas a lamentar-se e a queixar-se do que rebelar-se contra as injustiças; em segundo lugar, porque a esmagadora maioria das pessoas desconhece os catastróficos efeitos da lei que aí vem; e, por último, porque factos políticos de vária ordem entretanto ocorridos (caso Marcelo, orçamento, eleições americanas, etc.) não permitiram que os partidos da oposição se tivessem empenhado a sério na contestação da “lei”) e dada, por outro, a permanente atitude de intransigência do Governo, não é de esperar que a maioria parlamentar que apoia o Governo modifique algo do que é essencial, por mais sensatas que sejam as propostas da oposição. O Ministro Arnaut tem afirmado: “Estamos disponíveis para receber contribuições desde que não desvirtuem o sentido da reforma”. Não é preciso dizer mais nada para se perceber o que tal afirmação significa. Depois de aprovada a lei de autorização legislativa pelo Parlamento, a capacidade de manobra do Governo será muito limitada ou quase nula, por razões que não posso aqui explicar, mas que a comissão, se fosse minimamente competente, compreenderia. Face a este quadro, a única atitude que se impõe é exigir que o Presidente da República vete a lei. Não se deve solicitar ao Presidente da República uma actuação jurídica, mas uma actuação exclusivamente política! O Presidente terá de ser confrontado com as suas responsabilidades e o movimento dos inquilinos terá de compreender que pior do que a promulgação da lei pelo Presidente da República seria, nesta fase, uma actuação jurídica da sua parte. Vai haver muito tempo para actuar juridicamente, se a lei for aprovada tal como está ou sem alterações substanciais…
No contexto descrito, que é muito provavelmente o que se vai passar, o movimento de inquilinos, nesta fase, apenas deve manifestar o seu profundo repúdio por uma lei que desrespeita gravemente um dos mais importantes direitos fundamentais de natureza social, manifestar a sua recusa para qualquer tipo de solução que apele para o mercado como resposta e exigir um forte intervenção reguladora do Estado para todos os arrendamentos de pretérito.
Se houvesse veto e o Governo o pretendesse aproveitar, como tábua de salvação, para se livrar do imbróglio em que se meteu (enfim, por razões eleitorais, porque o PP, como toda a gente já percebeu, tem estado muito calado, deixando para o fogoso Ministro Arnaut as despesas da conversa…) se veria depois como actuar, tanto junto dos partidos da oposição como dos da maioria.


Lisboa, 13 de Novembro de 2004

sexta-feira, novembro 05, 2004

LEI DAS RENDAS (CONT.)

LEI DAS RENDAS (CONT.)
Notas críticas sobre o A. material da lei e sobre o conceito de mercado

1. Ainda sobre o A. material da “lei” – Gostaria de não continuar a insistir nas críticas ao A. material da lei, tanto mais que os factos enumerados no último texto publicado (intervenção de 28/10/04) são por si elucidativos do cuidado que o referido A. põe na conformidade dos textos que formula com a Constituição. Se os textos normativos relativos à reforma do arrendamento urbano forem aprovados pelo Governo com a formulação que hoje consta dos projectos, tais antecedentes não vão certamente deixar de ser tidos em conta por quem tiver a seu cargo a missão de aferir da sua conformidade com a Constituição. Não obstante, seja-me, todavia, permitido insistir em mais dois ou três aspectos que me parecem relevantes.
a. Primeiro – Como bem sabem os especialistas destas matérias do arrendamento urbano e até os leigos (profanos, dizia MANUEL DE ANDRADE), pelo interesse prático que a mesma tem para eles, o senhorio não pode denunciar livremente o contrato no fim do prazo contratual. A lei tipifica as situações em que tal pode acontecer, mas, por outro lado, tendo em conta certas particularidades do arrendatário ou o tempo de permanência deste no local arrendado, estabelece limitações ao exercício daquele direito pelo senhorio. Pois bem: a lei de autorização legislativa (Lei n.º 42/90) ao abrigo da qual foi aprovado o Decreto – lei n.º 321 – B/90, de 15 de Outubro (RAU), estabeleceu como directriz a seguir relativamente às alterações a introduzir no regime do arrendamento urbano, entre outras, a seguinte: “Preservação das regras socialmente úteis que tutelam a posição do arrendatário”, al. c), art. 2.º. Não obstante esta limitação, o Governo, com base no texto formulado pelo referido A., alargou as causas de denúncia do contrato de arrendamento, aditando às que constavam da legislação anterior, mais uma: necessitar o senhorio do prédio para habitação dos seus descendentes em 1.º grau. Perante tal texto, não se suscitaram entre os juristas grandes dúvidas acerca da sua inconstitucionalidade, apesar da argumentação em sentido diferente de uma pequena minoria de juízes do TC. Não deixa, contudo, de ser significativo que, logo em 1990, o próprio A. material da lei, em “Novo regime do arrendamento urbano anotado”, tenha afirmado que tal disposição constituía uma “inovação de grande significado” e que tal inovação era “inteiramente de aplaudir” (por razões que não interessa aqui descrever). Quer dizer, o A. material da lei numa clara manifestação de arrogância intelectual, nem sequer se apercebeu que, dizendo o que dizia, evidenciava sem margem para qualquer dúvida a contradição entre esta disposição do RAU e a norma da lei de autorização legislativa ao abrigo da qual aquele fora aprovado! O Conselheiro Guilherme da Fonseca, relator de um dos processos em que a constitucionalidade daquela disposição foi analisada, dizia, por isso, ironicamente: “É, assim, indiscutível que se trata de uma inovação significativa relativamente ao direito anterior (CC de 19966 e Lei 2030, de 22 de Junho de 1948) ”, para daí retirar as consequências devidas – a inconstitucionalidade da norma.
b. Segundo – O A. material da lei iniciou a sua intervenção no programa televisivo em que participou, em defesa da reforma do arrendamento, ao lado do Ministro, dizendo que desde o tempo dos romanos a locação é um contrato de natureza temporária. Também no direito português vigente o é. Aliás, nunca deixou de o ser. O problema como bem se compreende não está na temporaneidade do contrato de arrendamento e na consequente obrigação de o arrendatário restituir a coisa, findo o contrato, ao locador, mas antes em saber que direitos e obrigações impendem sobre ambos os contraentes. Aliás, o regime do direito romano clássico assegurava ao locador uma protecção mais extensa do que aquela que a reforma do Ministro Arnaut lhe concede. Com efeito, depois da Lex Aede, o locador ficou impedido de expulsar arbitrariamente o locatário. A expulsão só poderia fundamentar-se no abuso de gozo, no não pagamento das merces ou na necessidade urgente da coisa por parte do locador. O mesmo se diga relativamente ao direito português antigo, a partir das Ordenações Afonsinas, não obstante a existência da figura da enfiteuse capaz de dar satisfação a situações tendencialmente perpétuas de direitos de natureza real repartidos sobre a mesma coisa. Já que estamos no domínio da erudição, convém ainda acrescentar que não é apenas no direito romano e no antigo direito português que a posição do arrendatário estava particularmente defendida. Todo o ensinamento do direito comparado aponta para uma evolução da figura da locação no sentido do reforço da posição do arrendatário. Por último, não deixa de ser significativo que sendo o A. material da lei um acérrimo defensor, na esteira de Paulo Cunha, da natureza real do direito do arrendatário, agora se apresente como A. de um projecto que apenas lhe confere um precaríssimo direito obrigacional!

2. Sobre o conceito de mercado segundo a reforma – O Ministro tem frequentemente afirmado que não existe entre nós um mercado de arrendamento, sendo esse um dos objectivos da reforma: criar um verdadeiro arrendamento que possa desviar as pessoas da compra de casa própria e simultaneamente proporcionar aos novos arrendatários rendas mais baixas. Mas, se não existe mercado, se o que existe é um preço especulativo do arrendamento para habitação, então que renda vão os senhorios pedir aos inquilinos, quando, por sua iniciativa, decidirem transitar para o novo regime? Vão naturalmente pedir o preço que naquele mesmo momento está sendo pedido pelos seus congéneres. Ou seja, vão pedir um preço especulativo, que é o único preço de referência que eles conhecem, preço que, na maioria esmagadora dos casos, os actuais inquilinos não podem pagar ou, quando podem, muito provavelmente não querem. Então, se tudo se passar conformemente ao que foi imaginado, este comportamento dos inquilinos teria como consequência a denúncia do contrato e a entrada dos respectivos fogos devolutos no mercado. Como estas casas se iriam juntar às cerca de 600 mil que já estão devolutas, passaria a haver um excesso da oferta sobre a procura e o preço das rendas desceria. Esta argumentação, que é típica de um economista liberal, apontaria para uma situação que, se porventura viesse a verificar-se, permitiria afirmar, sem margem para qualquer dúvida, que a reforma promove o despejo dos actuais inquilinos para “fazer” o mercado! E a questão que então se põe é a seguinte: o legislador pode actuar deste modo relativamente a um bem como a habitação? Não há limites à discricionariedade legislativa num Estado de direito?

3. Outras considerações – O novo regime do arrendamento urbano (NRAU) que o Governo se prepara para aprovar – ou já aprovou, tal o desprezo a que o Parlamento é votado – é tão brutal que até o próprio Governo parece ter vergonha em o explicitar completamente. Primeiramente, tentou desviar a atenção do essencial com o discurso de protecção dos “velhinhos e dos pobrezinhos”, utilizando, como sempre acontece com todos os populismos, uma linguagem de cariz “social” para encobrir o essencial. Depois, tanto no preâmbulo da proposta de lei de autorização legislativa, como também no preâmbulo do projecto de decreto-lei regulador dos arrendamentos de pretérito, o legislador tenta esconder e disfarçar os verdadeiros efeitos das medidas neles contidas. Nunca em qualquer dos preâmbulos se disserta abertamente sobre o regime geral aplicável aos arrendamentos de pretérito. Fala-se em regime de transição, como se de um verdadeiro regime de transição se tratasse, vai-se apelando para o mercado como instrumento capaz de proporcionar “rendas justas e acessíveis”, fala-se na reabilitação do património imobiliário urbano, “como requisito indispensável para qualquer senhorio poder aceder ao novo regime” (!!) e outras tiradas do género, completamente falsas ou parcialmente falsas, como facilmente se comprova pela leitura do articulado. Se o nosso A. material da lei fosse um jurista minimamente independente e se não se comportasse com um fiel cumpridor das instruções do “dono da obra”, além de responder com clareza à questão acima formulada, desenganando as pessoas que ainda supõem que haverá um período de três anos durante o qual o novo regime se não aplicará, dir-nos-ia ainda que o novo regime descaracteriza o contrato de arrendamento urbano como nunca tinha acontecido entre nós, trata de modo profundamente desigual as partes (um, entre muitos exemplos, que se poderiam apontar: o direito de o senhorio transitar para o novo regime e o direito de actualização das rendas são direitos irrenunciáveis, mas já é renunciável pelo inquilino o direito de exigir a licença de utilização ou o certificado de habitabilidade ao senhorio…) e cria uma tal instabilidade ao inquilino, ao novo inquilino, que o mais provável é que ele contribua ainda mais para a inexistência de um mercado de arrendamento. Com efeito, nunca no direito português, desde a fundação até à actualidade, o arrendatário havia sido remetido para a situação em que a reforma o pretende colocar – o de um precaríssimo possuidor em nome alheio, em alguns casos com menos direitos que o simples comodatário. Nunca! Basta atentar em mais alguns simples exemplos. Em matéria de resolução, substituiu a enumeração casuística das causas de resolução por uma extensíssima cláusula geral,“justa causa”, como fundamento de rescisão. Por outro lado, não obstante todas as facilidades concedidas ao senhorio em matéria de denúncia do contrato, acentuando excessivamente a precariedade da posição do arrendatário, o legislador introduz ainda a extraordinária inovação de permitir ao senhorio a denúncia do contrato por “necessidade de utilização pelo próprio, pelo cônjuge ou por qualquer parente ou afim, na linha recta”! Isto é: nem sequer se exige que o prédio seja necessário para habitação, basta que qualquer daquelas pessoas necessite de o utilizar! Perante uma tal concepção do direito de propriedade, seguramente mais exacerbada do que existente nos tempos de Marx, não serão certamente tempos fáceis os tempos que nos esperam…Haja esperança, em todo o caso. Vivemos em democracia e vai ser certamente possível impedir sobre vários aspectos a vigência desta lei. Ela é, a vários títulos, inconstitucional.

Lisboa, 5 de Novembro de 2004